sexta-feira, 29 de outubro de 2021

A Viagem Estonteante e Surreal de "The Leftovers"

Tradução do artigo "The Dizzying, Surreal Journey of 'The Leftovers" de Spencer Kornhaber, da revista The Atlantic.


A série de HBO, uma pioneira entre os seus programas surreais recentes, conseguiu equilibrar o comum com o bizarro de forma brilhante.


No segundo episódio da primeira temporada de The Leftovers da HBO, Kevin Garvey, um comandante da polícia suburbano e atormentado, enfrentou uma crise existencial provocada por um bagel. Ele colocou as duas metades na correia de transporte da torradeira da esquadra, mas nenhum bagel, torrado ou por torrar, saiu do outro lado. A câmara observava de dentro da torradeira enquanto Kevin espreitava. O ator Justin Theroux alargou as narinas e arqueou as suas sobrancelhas negras para criar uma expressão de terror. Kevin atirou a máquina contra o balcão de forma violenta e mesmo assim não apareceu nenhum bagel. Para onde raio teria ido?

Os espectadores podiam assumir que Kevin estava a considerar duas respostas igualmente bizarras. Uma era que tinha perdido a cabeça em vez do bagel e que ia juntar-se ao seu pai maluco num hospital psiquiátrico. A outra era que o bagel tinha desaparecido de forma sobrenatural, tal como 140 milhões de pessoas, dois por cento da população mundial, tinham desaparecido inexplicavelmente a 14 de outubro de 2011. De qualquer forma, Kevin estava a reavaliar a sua perceção do mundo e os espectadores estavam a fazer o mesmo enquanto tentavam perceber o que tinham visto no ecrã.

Kevin Garvey procura o bagel

Este tipo de cena era típica nas três temporadas de The Leftovers, que estreou em 2014 e terminou em junho, ainda que estivesse longe de ser a situação mais estranha que a série apresentou. Ao imaginar o rescaldo de um acontecimento como o arrebatamento cristão, mas implementada de forma inescrutável e sem a confirmação da existência de Deus, a série de Damon Lindelof e Tom Perrotta dava muitas vezes a sensação de se tratar de um desafio de comédia negra para ver até onde um drama televisivo bonito e realista podia impor uma estética de desorientação. Sequências de sonhos, coincidências bizarras e imagens perturbadoras incitavam tanta adrenalina como a ação do enredo. Algo essencial para o apreço dos espectadores da séries foi o apetite por reflexão filosófica e elementos Kafkianos. Os críticos, ao que parece, estavam sedentos por esses aspetos e adoraram a série. Porém, as audiências mantiveram-se pequenas, o que parecia indicar que poucos criadores de TV optariam por seguir um caminho tão desconcertante.

E, no entanto, quando The Leftovers acabou, a série destacava-se como uma pioneira numa nova onda de série de televisão arriscadas e voltadas para o metafísico. Westworld e The Young Pope da HBO, Mr. Robot da USA, The OA da Netflix, Legion da FX e alguns dramas de prestígio recentes fintam e desviam-se da coerência e aceitam o desafio proposto desta forma por um engenheiro de Westworld às suas criações de inteligência artificial: "Alguma vez questionou a natureza da sua realidade?" Assistir a estas séries resulta em perguntas constantes sobre se o que estamos a ver é a verdade. Em março, James Poniewozik do The New York Times designou esta colheita como "TV surrealista", descrevendo-a como uma forma de arte nos dias das notícias falsas, de abuso mental e de questionamento da objetividade.

Este subgénero em ascensão não é completamente novo, claro. A lógica dos sonhos e reviravoltas visuais de Twin Peaks (agora de volta à televisão num relançamento da Showtime) e os flashbacks de Lost (o trabalho que tornou Damon Lindelof famoso) precedem-no. Assim como décadas de cinema experimentalista e existencial. Além disso, há questões comerciais básicas que certamente desempenham o seu papel nesta tendência: à medida que as Netflixes do mundo se juntam à HBO na corrida para acumular conteúdo original para os seus subscritores (um estudo indica que foram produzidas mais de 450 séries o ano passado) criar um burburinho a partir de queixos caídos pode ser algo quase tão valioso como manter grandes audiências.

Cena de Twin Peaks

Contudo, as bases filosóficas destas séries são bastante semelhantes. Numa variedade de formas invulgarmente específicas, cada uma delas explora como o nosso mundo pode ser refeito (ou destruído) pela mente. A narrativa ao estilo de boneca russa de Westworld, por exemplo, parece acontecer num futuro onde os robots começam a aperceber-se da sua consciência. O anjo autoproclamado de The OA pode estar, ou não, a voltar atrás na sua história sobre dimensões alternativas. E o jovem Papa de The Young Pope viaja pelas suas memórias e sonhos no caminho para abraçar a sua fé. Em cada um destes casos, o impulso humano de questionar a existência de realidades para além desta cria a bizarria formal. O criador de The Young Pope, Paolo Sorrentino, declarou um termo tão adequado como "Televisão surrealista": "thriller da alma".

Entre esta geração psicadélica de séries, The Leftovers conseguiu a relação mais convincente entre o real e o imaginário, o banal e o bizarro. Recorrendo a um grupo apelativo de personagens de uma cidade pequena cujas vidas são subitamente abaladas, a série misturou um livro de memórias com comédia salvagem e especulações sobre como uma civilização desconfortável com o mistério poderá lidar com algo verdadeiramente incompreensível. O resultado pareceu um buffet de surpresas, e não só porque os criadores estavam a tentar manter os espectadores desorientados: as próprias personagens encontravam-se desorientadas. Ao evitar o sobrenatural pleno (para além da catástrofe de outubro em si), ao mesmo tempo que manteve um sentido profundo do estranho, The Leftovers foi mais do que um exemplo fascinante da televisão surreal contemporânea. A série acabou por se tornar numa obra genuína e profunda de surrealismo moderno. Afinal, para cada um de nós nesta vida, há certos dias em que o simples ato de fazer o pequeno-almoço pode parecer um teste de sanidade.

No primeiro "Manifesto do Surrealismo", publicado em 1924, André Breton escreveu que "sob o pretexto da civilização e do progresso, fomos capazes de expulsar da mente tudo o que poderia ser considerado, bem ou mal, superstição ou fantasia". Influenciado pelos dadaístas, que reagiram aos horrores da Primeira Guerra Mundial com uma anarquia artística, e pela insistência de Sigmund Freud sobre a importância do subconsciente, o surrealismo de Breton procurou mais do que a desconstrução do nosso mundo como o conhecemos. Na agenda encontrava-se um reencantamento do mundo. Ao prestar uma verdadeira atenção aos sonhos, aos pensamentos automáticos e às justaposições estranhas da vida moderna, os surrealistas construíram uma crítica das limitações da racionalidade. O objetivo não era a busca por uma fantasia recheada de ficção científica. O objetivo era ressuscitar a sensibilidade que deu origem à religião. No cerne animado do surrealismo encontrava-se uma "busca pela cultura primitiva", como escreveu Georges Bataille.

André Breton

Os habitantes do mundo de The Leftovers passam realmente por um apagão mental e espiritual que os opõe à "civilização e progresso". A ciência não foi capaz de explicar o desaparecimento instantâneo de milhões de pessoas. Um comité que investigou o "Desaparecimento Súbito" acabou desnorteado. As grandes religiões também não deram respostas claras: o 14 de Outubro levou santos, pecadores e ateus. O padre episcopal Matt Jamison, com a sua congregação em declínio e uma mulher que ficou em estado vegetativo num acidente automóvel ocorrido durante o Desaparecimento, abraçou expressões ridículas de fé. A certa altura, trancou-se numa paliçada em cima de um camião de tacos. Esta não foi a única vez em que The Leftovers inseriu símbolos medievais na vida moderna. Um snack-bar movimentado tornou-se num local improvisado de sacrifícios de bodes; a mortificação da carne regressou na forma de jogos de festa entre adolescentes, de castigos corporais em público e de asfixia (não-erótica) com sacos de plástico.

A força mais surrealista da primeira temporada da série foi o culto niilista dos Remanescentes Culpados. Vestidos de branco, a fumar cigarros incessantemente e sujeitos a um voto de silêncio, os seus membros perturbaram a ordem social frágil e destabilizaram o subconsciente da comunidade. Uma brochura que entregaram numa paragem de autocarro informava que "Tudo o que Interessa sobre Si Encontra-se no Interior"; o interior era branco, claro. "O ato surrealista mais simples consiste em correr para a rua, de pistola na mão e disparar cegamente... contra a multidão", escreveu Breton. Os Remanescentes não chegaram tão longe, mas os seus acólitos simularam friamente terror aleatório ao, por exemplo, atirarem uma granada falsa para um autocarro escolar cheio de crianças. Os alvos reagiram com raiva violenta ou aceitação, tornando-se também eles em provocadores silenciosos ou, no caso de Kevin Garvey, mergulhando na profunda loucura.

Os Remanescentes Culpados

Um pouco de loucura acabou por ser um facto na vida de todas as personagens enquanto enfrentavam uma realidade que sofreu uma avaria. Nora Durst, uma investigadora de fraude pugnaz que perdeu o marido e dois filhos no Desaparecimento, adquiriu o hábito de contratar prostitutas para a alvejar enquanto usava um colete à prova de bala. Porém, aquele que acabou por ser o seu novo namorado, Kevin, um polícia com as emoções à flor da pele que foi praticamente abandonado pela família, apesar de tentar manter uma aparente normalidade depois do Desaparecimento, sucumbiu a uma insanidade mais grave.

A sua saga do bagel teve uma resolução racional: ele acabou por pegar num berbequim e abrir a torradeira, onde encontrou dois círculos queimados na parte de trás da máquina. No entanto, ele enlouqueceu. Uma grande parte de The Leftovers foi passada dentro da sua cabeça enquanto os espectadores lhe faziam companhia nalgumas aventuras bastante estranhas. No penúltimo episódio da série, ele deu por si num bunker subterrâneo onde dois Kevins, um com barba e o outro sem, se enfrentaram.

Ao apresentar esta sua jornada rumo à possível insanidade, The Leftovers teve muito em comum com outras histórias ao estilo de Jekyll and Hyde na televisão, que incluem Mr. Robot e Legion, sendo que ambas apresentaram momentos que mais tarde provaram ser experiência mais ou menos psicóticas. Mas, ao contrário destas séries, The Leftovers quase nunca tentou enganar os espectadores e fazê-los acreditar que o que surgia no ecrã era real quando não o era. Todas as visões de Kevin foram explicitamente ambíguas quanto à sua autenticidade, mesmo que outras personagens, admiradas com o facto de ele ter sobrevivido a experiências mortais, carregaram as ressurreições de significado religioso. (Damon Lindelof realçou que o que não falta no nosso mundo são histórias incríveis de pessoas que desafiam a morte).

Ao equilibrar constantemente o invulgar com aspetos verdadeiramente inacreditáveis, a série acentuou uma dinâmica que se tornou familiar nos nossos tempos. O livro de Tom Perrotta, The Leftovers é, em grande parte, uma alegoria do luto do pós-11 de Setembro e Damon Lindelof visitou a cidade de Newton no Connecticut, após o massacre na escola primária de Sandy Hook, enquanto fazia pesquisa para a primeira e sombria temporada de The Leftovers. A violência incompreensível e a tragédia que se segue, injetam uma dimensão surreal à existência. As teorias da conspiração e as perturbações sociais provocadas pelos desaparecimentos massivos no nosso mundo (e, como Damon Linderof sublinhou, por surpresas eleitorais) sugerem que a estranheza de The Lefovers surge mais em camadas e não como um facto consumado.

Mas como é que, face ao anormal, a sociedade pode evitar a loucura? The Leftovers mudou-se do cenário frio de uma cidade no Estado de Nova Iorque na primeira temporada para o Texas na segunda temporada e depois para a Austrália na terceira temporada. Pelo caminho, o pesadelo do luto do seu conceito original foi temperado com fantasia e grandiosidade à medida que a série avaliava se as pessoas conseguem, nas palavras da música de abertura da segunda temporada, "permitir que haja mistério". O último episódio da série (alerta de spoiler para quem ainda não viu) apresentou o seu teste mais radicalmente desorientador aos espectadores e para as personagens.

O último episódio começou com o único galanteio que a série teve com a ficção científica: Nora a preparar-se para entrar num dispositivo radioativo para morrer ou, segundo as físicas que o inventaram, ser levada para o local onde se encontram os Desaparecidos. Porém, os aspetos verdadeiramente surreais surgiram quando houve um corte e passamos a ver uma Nora mais velha e sozinha numa zona rural da Austrália, onde, para sua surpresa, um Kevin mais velho apareceu de repente, a agir como se eles nunca tivessem partilhado uma vida. Estaria Kevin a ficar maluquinho outra vez? Ou seria isto outra realidade, um universo alternativo?


Quase tudo nesse cenário parecia impossível, até nos ser revelado que quase tudo constituía comportamentos humanos plausíveis. Nora desapareceu no dia em que entrou na máquina e Kevin passou uma década à sua procura, apesar de lhe terem dito que ela tinha desaparecido de vez. Quando ele a encontrou e descobriu que ela tinha se tinha escondido dele durante aqueles anos, ele decidiu agir quase como um estranho e convidá-la para um primeiro encontro. Pouco tempo depois, Kevin confessou a Nora que fingiu a amnésia e o impulso de negar a história (a deles e a do mundo) não pareceu assim tão rebuscado. Quem não gostaria de começar tudo de novo?

Se o desejo de voltar atrás é humano, o desejo de obter todas as respostas também o é, um desejo que Nora satisfez com a história que contou a Kevin. A máquina radioativa levou-a mesmo, segundo ela, ao local onde se encontram os Desaparecidos. Lá, ela viu que os seus filhos e o marido (que tinham uma nova mãe e esposa) eram das poucas famílias felizes numa dimensão alternativa cruel onde 98% da população tinha desaparecido no 14 de Outubro. Então, ela decidiu não interferir. O processo de regressar demorou tanto tempo e a história dela parecia tão improvável, que ela não procurou Kevin quando regressou. Nos últimos momentos da série, ele pegou na mão dela e disse que acreditava na sua história.

Com este final chocante, mas ao mesmo tempo discreto, The Leftovers expôs a atração e os limites da esperança humana por novos começos. Se acreditarmos na história de Nora de que viajou para outra dimensão, ela regressou convencida de que há dor que nunca sara. Mas, e se não acreditarmos? Na verdade, a história final de The Leftovers pode ser interpretada como uma validação da fé, tanto da cega como da ponderada. A fé corrosiva, irracional e dedicada de que Nora voltaria a ver a sua família levou-a a entrar na máquina. Essa foi a mesma fé que levou Kevin a passar anos à sua procura. A história que Nora contou não pode ser confirmada, mas acreditar nela oferece mais consolo do que a alternativa: de que ela não viajou para outra dimensão e que decidiu simplesmente viver a sua vida em isolamento.

Os surrealistas do início do século XX desafiaram a racionalidade, não para escaparmos do mundo onde vivemos, mas para o explorar no seu pleno, mesmo com os seus aspetos mais assustadores. Em muitas das séries surrealistas que têm surgido ultimamente na televisão, o conhecimento acaba por se render ao misticismo e à irracionalidade. Em The OA, adolescentes cínicos do século XXI sacrificam-se num ritual arcaico num momento de crise; o clímax da primeira temporada de Westworld consistiu num repúdio terrorista do trabalho que levou os humanos a fazer de deuses. Ambas as reviravoltas oferecem bastante satisfação a quem procura analisar as ansiedades da nossa era relativas ao confronto entre a fé e a ciência.

The Leftovers contornou confrontos violentos e conversas duras para fechar num tom que pareceu tanto primitivo como pós-moderno. No final, estas personagens afinaram as suas crenças, não de acordo com pretensões ilusórias da existência de uma verdade universal, ou de alguma ordem transcendente, mas com a busca diária por paz e felicidade. Esta conclusão é mais fundada e menos romântica do que a cena final, com Kevin e Norade mãos dadas, sugere. Os espectadores não são enganados para acreditar que a luta por segurança e significado face ao absurdo tenha acabado, ou que alguma vez vá acabar. The Leftovers mostrou o contrário, tal como o nosso próprio mundo.



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