segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Neil Gaiman: O Guia de um Zé Ninguém nos Óscares

Alguns escritores estavam zangados por não irem aos Óscares. Uns amigos contaram-me. "Então, tu vais?", perguntaram eles.

Eu tinha escrito um livro chamado Coraline e a Porta Secreta que o realizador Henry Selick tinha transformado numa maravilha em stop-motion. Tinha ajudado o Henry o mais que pude durante todo o processo de transformar algo de um livro num filme. Tinha apoiado o filme, encorajado as pessoas a ir vê-lo, cravado botões num trailer na internet. Tinha escrito um segmento de 15 segundos para os Óscares no qual a Coraline dizia a um jornalista que impacto teria na sua vida ganhar um Óscar. Achei que isso seria o suficiente para me levar aos Óscares. Não foi. Porém, o Henry, na qualidade de realizador, tinha bilhetes e podia decidir a quem entregá-los e entregou-me um deles.



O meu pai tinha falecido no dia 7 de março de 2009. Os Óscares deste ano foram no dia 7 de março. Esperava que fosse um dia como os outros e que isso não me incomodasse nada, o que demonstra que não me conheço a mim próprio muito bem porque, quando chega o dia, sou a personificação da melancolia e não quero ir aos Óscares. Quero ficar em casa, passear na floresta com o meu cão e se pudesse simplesmente carregar num botão e ficar lá sem desiludir ninguém, era o que fazia.

Visto-me. Uma estilista chamada Kambriel, que conheci quando fez um vestido que permitisse que a minha noiva e o Jason Webley representassem gémeos siameses, tinha-se oferecido para me vestir para os Óscares e eu aceitei a oferta. Ela fez-me um blazer e um colete e até acho que eles me ficam bem. E o melhor de tudo é que agora tenho uma resposta para as pessoas que me perguntam: "O que vais usar nos Óscares?" E isso deixa a Kambriel muito feliz.

A Focus Films, que distribuiu Coraline está a tratar bem de mim. Na noite de véspera dos Óscares deram uma pequena festa no Chateau Marmont para os seus dois nomeados: Coraline e Um Homem Sério. Os convidados eram uma mistura estranha de judeus de Minneapolis e de animadores. E ainda mais estranho era o facto de eu ser um dos judeus de Minneapolis (ou quase: acabei por comparar apontamentos com um dos convidados que serviram para um artigo explosivo para o jornal de St. Paul que denunciava que afinal vivo a uma hora de Minneapolis).

A melhor parte dos Óscares, apercebi-me disto quando anunciaram os nomeados, é que Coraline não vai ganhar o prémio de melhor filme de animação. Nada para além de Up- Altamente pode vencer o prémio de melhor filme de animação.

Uma limusine vem buscar-me às 15:00 e vamos para os Óscares. Vamos devagar: as ruas estão fechadas. Os últimos civis que vemos estão numa esquina a segurar em cartazes que dizem que Deus Odeia Gays, que os terramotos recentes são a Forma Espacial de Deus de Odiar Gays e que os Judeus Roubaram alguma coisa, mas não consegui ver bem o quê porque estava outro cartaz a tapar essa parte.

Quando estamos a um bairro de distância do Kodak Theatre, o carro é revistado e depois chegamos lá e atiram-me para a carpete vermelha. Alguém coloca um recibo na minha mão para encontrar o carro mais tarde.

É um caos controlado.

Estou especado ali no meio e apercebo-me de que não faço ideia do que tenho de fazer agora, mas as mulheres parecem borboletas e há pessoas nas bancadas que gritam sempre que uma limusine chega. Alguém chama: "Neil?"

É a Deette da Focus. "Acabei de levar o Henry. Que bela coincidência. Queres que te leve?"

Quero muito. Ela pergunta se quero passar pelas câmaras e eu digo que sim porque a minha noiva está na Austrália e as minhas filhas estão a ver a cerimónia na televisão e a Kambriel vai ficar feliz por ver o blazer dela na televisão.



Caminhamos pela multidão atrás de alguém com um vestido bonito. Parece uma aguarela de um sonho. Não reconheço ninguém, exceto o Steve Carrell porque ele é exatamente igual ao Steve Carrell da televisão, só que é um bocadinho menos cor-de-laranja.

Arrumam-nos como sardinhas enlatadas quando passamos pelos detetores de metal e alguém pisa o vestido de aguarela bonito e a senhora que o está a usar é muito cortês quando isso acontece.

Pergunto à Deette quem está dentro do vestido e ela diz-me que é a Rachel McAdams. Quero cumprimentá-la (a Rachel disse coisas simpáticas sobre mim em algumas entrevistas), mas ela agora está a trabalhar. Eu não. Ninguém quer tirar-me fotografias, nem, descobre a Deette, entrevistar-me. Sou invisível.

Paramos na curva da carpete vermelha. Observo o vestido de aguarela da Rachel McAdams e pergunto-me se consigo ver a marca de um sapato. As câmaras disparam, mas não na minha direção.

E entramos no Kodak Theatre. Uma pessoa apresenta-me ao editor da revista Variety. Apercebo-me de que as minhas competências de reconhecimento facial não funcionam quando as pessoas estão a usar fatos (com a exceção do James Cameron que até hoje nunca vi sem um fato e não reconheceria se estivesse a usar outra coisa). Digo isto ao editor da Variety. Ele aponta para um homem bronzeado e com um grande sorriso, diz-me que é o Mayor de Los Angeles. "Ele vem a estas coisas todas", diz ele. "Porque é que não está atrás da secretária a trabalhar?"

"Er. Porque este é maior dia do ano em Hollywood?" Aventuro-me. "E é domingo?"

"Bem. Sim, Mas ele só aparece quando se abre o armário das bebidas".

Tinha ido aos Globos de Ouro seis semanas antes e descobri que os intervalos nas cerimónias de entrega de prémios são passados numa forma estranha de speed-dating em massa de Hollywood, já que as pessoas andam pela sala a tentar encontrar amigos ou fechar negócios e assumo que esta noite seja igual.

O Kodak Theatre tem um andar térreo e, acima dele, três mezaninos. O meu bilhete é para o primeiro mezanino. Subo, como uma ovelha, as escadas. As pessoas esmagam-se para entrar à medida que uma voz incorpórea nos diz com urgência que os prémios da Academia começam daí a 5 minutos. Olho especado para a mulher à minha frente. Ela tem cabelo louro e uma cara que se parece estranhamente com um peixe, uma cara de plástico assustadora e doce ao mesmo tempo. Ele tem mãos velhas e um marido pequeno e enrugado que parece ser muito mais velho do que ela. Pergunto-me se tinham a mesma idade quando se casaram.

E estamos aqui, sem tempo a perder. As luzes apagam-se e o Neil Patrick Harris canta uma canção especial para os Óscares. Parece que não tem melodia. Várias pessoas no Twitter que não souberam distinguir os dois Neils felicitam-me pelo número.

E agora os nossos anfitriões: Steve Martin e Alec Baldwin. Eles apresentam-se e dizem piadas. A partir do primeiro mezanino, o timing não parece certo, as piadas são constrangedoras, a forma como são ditas é rígida. Mas não parece que estão a atuar para nós. Pergunto-me se aquilo funciona na televisão e faço essa pergunta no Twitter. Algumas centenas de pessoas dizem-me que é tão mau na televisão como o que estou a ver, 20 dizem-me que estão a gostar. Chego à conclusão de que o Twitter serve para isto: fazer-nos companhia quando estamos completamente sozinhos no mezanino.

O melhor filme de animação é a segunda categoria da noite. Os meus 15 segundos da Coraline a falar para a câmara passam depressa. Aí está, penso eu. A maior audiência que as minhas palavras alguma vez vão ter. Up vence.



Os Óscares continuam. No público não conseguimos ver o que se vê na televisão em casa. Algures abaixo de mim, o George Clooney está a fazer caretas para a câmara, mas eu não sei.

A Tina Fey e o Robert Downey Jr. apresentam o prémio de melhor argumento e têm piada. Pergunto-me se escreveram o segmento deles.

Durante o intervalo, as luzes diminuem e começam a tocar uma música própria para conviver. A Roxanne não tem de ligar a luz vermelha.

Dirijo-me ao bar do primeiro mezanino. Tenho fome e quero matar algum tempo. Bebo whisky. Peço um brownie de chocolate que descubro que é quase tão grande como a minha cabeça e a coisa mais doce que alguma vez coloquei na minha boca. Partilho-o.

As pessoas sobem e descem as escadas sem rumo.

Com o whisky e o açúcar a repararem o meu sistema, desafio as ordens escritas no meu bilhete que dizem para não fotografar nada e envio uma fotografia do menu do bar para o Twitter. A minha noiva está a enviar-me mensagens no Twitter onde me pede para fotografar o interior da casa-de-banho das senhoras, algo que ela fez nos Globos de Ouro, mas mesmo no meu estado carcomido pelo açúcar, aquela parece-me uma ideia potencialmente desastrosa. Ainda assim, penso, devia descer as escadas e cumprimentar o Henry Selick no intervalo seguinte. Desço as escadas. Um jovem simpático de fato pede-me o meu bilhete. Eu mostro-lhe. Ele explica que, na qualidade de residente do primeiro mezanino, não tenho permissão para descer as escadas e potencialmente incomodar os VIP's.

Fico revoltado.

Na verdade, não estou revoltado, mas fico um pouco aborrecido e tenho amigos lá em baixo.

Decido que vou convencer os habitantes dos mezaninos a fazerem uma revolução e a invadirem as escadas como no Titanic. Podem disparar contra alguns de nós, penso eu, mas não nos podem travar a todos. Podemos ser livres: podemos beber no bar lá em baixo, podemos conviver com o Harvey Weinstein.

Alguém me diz no Twitter que ninguém está a vigiar os elevadores. Suspeito que isso pode ser uma armadilha e regresso ao meu lugar.

Perdi o tributo aos filmes de terror.

A Rachel McAdams apresenta um prémio no seu vestido belo e tão na moda.

Nos prémios para o melhor ator e melhor atriz, um conjunto de pessoas que já trabalharam com os nomeados dizem-nos como são todos maravilhosos. Pergunto-me se aquilo funciona na televisão. No palco à nossa frente, é tão desajeitado que dói.

As pessoas em baixo estão a atropelar-se e a conversar e a bisbilhotar cada vez mais a cada intervalo. Começa a sentir-se uma ponta de pânico na voz incorpórea da anunciadora quando manda toda a gente regressar aos seus lugares.

O homem no bar que se parecia com o Sean Penn era mesmo o Sean Penn. A ovação em pé ao Jeff Bridges chega até ao último mezanino. A ovação em pé à Sandra Bullock só chega às filas da frente do nosso nível e para aí. A ovação em pé à Kathryn Bigelow chega a todo o auditório, exceto, por alguma razão, ao cimo do lado direito do primeiro mezanino, onde eu estou sentado e onde nos mantemos sentados e batemos palmas com cortesia.

Tudo parece estar a ganhar força para atingir o clímax e depois o Tom Hanks entra no palco e diz-nos, sem qualquer cerimónia (sem contar com os meses de campanha para os Óscares) que, ah, já agora, o Estado de Guerra venceu a categoria de melhor filme e boa noite. E acabou.

Subo dois lances de escadas para chegar ao baile do governador e sento-me a falar com o Michael Sheen (que trouxe a sua filha Lily de 11 anos) sobre o jantar de sushi que tivemos dois dias antes e foi interrompido por uma operação policial. Ainda não fazemos ideia porquê. (Na manhã seguinte vai ser uma notícia de primeira página no New York Times. Estavam a servir carne ilegal de baleia).

Vejo o Henry Selick. Ele parece estar aliviado por ter terminado a época de prémios e por poder prosseguir com a vida dele.

Parece-me que andei sonâmbulo e invisível num dos dias mais melancólicos da minha vida. Naquela noite há festas glamourosas, mas não vou a nenhuma e prefiro ficar sentado no lobby de um hotel com bons amigos. Falamos sobre os Óscares.

Na manhã seguinte, na última página do suplemento dos Óscares do Los Angeles Times há uma fotografia panorâmica enorme das pessoas na carpete vermelha. Com uma certa surpresa, encontro-me nela de pé mesmo no meio a olhar especado para o belo vestido de aguarela da Rachel McAdams, à procura de marcas de sapatos.