quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Excerto de "American Gods" de Neil Gaiman

 O texto original encontra-se aqui.
Primeira Parte

Sombras


As fronteiras do nosso país, senhor? Bem, senhor, a Norte fazemos fronteira com a Aurora Boreal, a Este com o Sol nascente, a Sul fazemos fronteira com a procissão de Equinócios e a Oeste com o Dia do Julgamento.

                Sombra tinha passado três anos na prisão. Ele tinha altura suficiente e um aspecto de “não te metas comigo” na quantidade certa, pelo que o seu maior problema era queimar tempo. Assim mantinha-se em forma e aprendia truques de moedas sozinho e pensava muito no quanto amava a sua mulher.
                A melhor parte – na opinião de Sombra, talvez a única parte boa – de estar na prisão, era a sensação de alívio. A sensação de que tinha chegado ao mais baixo que podia chegar e que tinha atingido o fundo. Não tinha a preocupação de ser apanhado pela autoridade, porque a autoridade já o tinha apanhado. Já não tinha medo do que o amanhã poderia trazer porque já o tinha trazido ontem.
                Não importava, decidiu Sombra, se tinha feito aquilo de que tinha sido acusado ou não. Na sua experiência, toda a gente que tinha conhecido na prisão estava ofendida com alguma coisa: havia sempre algum aspecto onde as autoridades tinham errado, algo que disseram que eles fizeram quando isso não aconteceu – ou não fizeram bem como eles disseram que tinham feito. O que importava era que os tinham apanhado.
                Ele tinha reparado nisso nos primeiros dias, quando tudo, desde a gíria até à má comida eram novidades. Apesar da miséria e do horror completo da encarceração, estava a respirar de alívio.
                Sombra tentou não falar demasiado. Algures em meados do segundo ano ele fez menção da sua teoria a Discreto Lyesmith, o seu colega de cela.
                Discreto, que era um vigarista do Minnesota, fez o seu sorriso assustado. – Pois. – Disse – Isso é verdade. Ainda é melhor quando se recebe a sentença de morte. Aí é que vêm à memória as anedotas sobre os tipos que tiravam as botas a pontapé quando lhes metiam o laço no pescoço porque os amigos sempre lhes disseram que iam morrer com as botas calçadas.
                - Isso é uma anedota? – perguntou Sombra.
                - Claro. Comédia de cadafalsos. É a melhor que existe.
                - Quando foi a última vez que enforcaram um homem neste Estado? – perguntou Sombra.
                - Como raio queres que eu saiba? – Lyesmith manteve o seu cabelo ruivo a fugir para o louro quase sempre rapado. Dava para ver os contornos do seu crânio. – Mas digo-te uma coisa. Este país começou a ir pelo cano abaixo quando pararam de enforcar pessoas. Não há pactos de enforcamento sem terra de enforcado.
                Sombra encolheu os ombros. Nunca viu nada romântico numa sentença de morte.
                Se não se estava condenado à morte, decidiu, então, a prisão era, no melhor dos casos, um retiro temporário da vida por duas razões. Primeiro, a vida escapa-se para a prisão. Há sempre lugares para descer mais abaixo. A vida continua. E, segundo, se aguentarmos, vai chegar o dia em que nos vão deixar sair.
                No início era algo que ainda estava longe demais para permitir que Sombra se concentrasse. Depois, tornou-se num raio de esperança distante e aprendeu a dizer a si mesmo: “também isto irá passar” quando acontecia merda na prisão, como sempre aconteceu. Um dia a porta mágica iria abrir-se e ele iria passar por ela. Assim, foi riscando os dias no seu calendário de Aves Canoras da América do Norte, que era o único calendário que vendiam na esquadra, e o Sol punha-se e ele não o via e o Sol nascia e ele não o via. Praticava truques de moedas com um livro que tinha encontrado no panorama desolador da biblioteca da prisão e fazia exercício e fazia listas na sua mente do que faria quando saísse da prisão.
                As listas de Sombra ficavam cada vez mais curtas. Após dois anos tinha-as reduzido a três coisas.
                Primeiro, ele iria tomar um banho. Seria um banho longo como devia ser numa banheira com bolhas. Talvez lesse o jornal ou talvez não. Havia dias em que pensava de uma maneira e outros doutra.
                Segundo, iria limpar-se com uma toalha, vestir um robe, talvez calçar uns chinelos. Ele gostava da ideia dos chinelos. Se fumasse, estaria a fumar um cigarro naquele momento, mas não fumava. Pegaria na sua mulher nos seus braços (“Cãozinho” - guincharia num terror fingido e com prazer verdadeiro – o que estás a fazer?). Ele levaria-a para o quarto e fecharia a porta. Encomendariam uma pizza se tivessem fome.
                Terceiro, depois de ele e Laura saírem do quarto, talvez uns dois dias após terem entrado, ele ia enfiar-se no seu canto e não se meter em mais sarilhos para o resto da vida.
                - E depois vais ser feliz? – Perguntou Discreto Lyesmith.
                Naquele dia estavam a trabalhar na loja da prisão, a juntar comedouros de aves, algo que era pouco mais interessante do que marcar matrículas de automóveis.
                - Não digas que um homem é feliz – disse Sombra – até ele estar morto.
                - Heródoto – disse Discreto. – Hei, estás a aprender.
                - Quem raio é o Heródoto? – Perguntou O Homem Gelo enquanto montava os lados de um comedouro e o passava a Sombra que o aferrolhou e aparafusou.
                - Um grego morto. – Disse Sombra.
                - A minha última namorada era grega – disse o Homem Gelo. – As merdas que a família dela comia. Nem dava para acreditar. Como arroz embrulhado em folhas. Merda dessa.”
                Homem Gelo tinha o mesmo tamanho e forma de uma máquina de refrigerantes, de olhos azuis e cabelo tão louro que era quase branco. Ele quase tinha desfeito um tipo que tinha cometido o erro de apalpar da sua namorada no bar onde esta dançava e o Homem Gelo era porteiro. Os amigos do tipo chamaram a polícia que prendeu o Homem Gelo e fez uma investigação que revelou que o Homem Gelo tinha fugido de um programa de trabalho condicional dezoito meses antes.
                - O que é que queriam que eu fizesse? – Perguntou o Homem Gelo, ofendido, quando tinha contado todo o conto triste a Sombra. – Eu tinha-lhe dito que ela era a minha namorada. Ia deixa-lo desrespeita-la daquela maneira? Ia? Quero dizer, ele apalpou-a toda.
                Sombra tinha dito – É assim mesmo – e tinha deixado aí o assunto. Uma coisa que ele tinha aprendido há algum tempo era que cada um cumpre a sua pena na prisão. Não se cumpre as penas de outras pessoas por elas.
                Fica no teu canto. Cumpre a tua pena.
                Lyesmith tinha emprestado uma cópia gasta de capa molde do “Histórias” de Heródoto há vários meses. -Não é aborrecido. É porreiro. - Disse ele quando Sombra protestou e disse que não lia livros. – Lê primeiro, depois diz-me se é porreiro”.
                Sombra fez uma cara feia, mas tinha começado a ler e deu por si viciado contra a sua vontade.
                 - Gregos – disse o Homem Gelo com repugnância. – E o que dizem sobre eles nem é verdade. Eu tentei fazê-lo no rabo da minha namorada e ela quase me arrancou os olhos.
                Lyesmith foi transferido um dia, sem aviso. Deixou a sua cópia de Heródoto a Sombra. Estavam uma moeda de cinco cêntimos escondida nas páginas. As moedas eram contrabando: pode-se afiar as pontas numa pedra e abrir a cara de alguém numa luta. Sombra não queria uma arma; Sombra queria apenas algo para fazer com as mãos.
                Sombra não era supersticioso. Não acreditava em nada que não conseguia ver. Ainda assim, ele conseguia sentir o desastre a pairar sobre a prisão nas últimas semanas, tal como o tinha sentido nos dias que antecederam o roubo. Havia um vazio no fundo do seu estômago que ele tentou interpretar simplesmente como o medo de voltar para o mundo lá fora. Porém, não podia ter a certeza. Estava mais paranóico do que o costume e na prisão o costume era muito e era uma ferramenta para a sobrevivência. Sombra ficou mais calmo, mas sombrio do que nunca. Deu por si a observar a linguagem corporal dos guardas, dos outros reclusos, à procura de uma pista para a coisa má que iria acontecer, como se tivesse a certeza que aconteceria.
                Um mês antes estava programado ser libertado. Sombra sentou-se num escritório gelado, de caras com um homem baixo com uma marca de nascença da cor do vinho do Porto na testa. Sentaram-se em lados opostos da secretária; o homem tinha o ficheiro de Sombra aberto à sua frente e segurava uma esferográfica. A ponta da esferográfica fora mastigada sem rodeios.
                - Tem frio, Sombra?
                - Sim, - disse Sombra – um pouco.
       O homem encolheu os ombros. – O sistema é assim – disse ele – as caldeiras só começam a funcionar no dia um de Dezembro. Não sou eu que faço as regras. – Ele percorreu com o seu dedo indicador a folha de papel agrafada no interior do lado esquerdo da pasta.
                - Tem trinta e dois anos?
                - Sim, senhor.
                - Parece mais novo.
                - Tenho uma vida limpa.
                - Diz aqui que tem sido um recluso modelo.
                - Aprendi a minha lição, senhor.
                - A sério? – Ele olhou para Sombra atentamente, a marca de nascença na sua testa foi para baixo. Sombra pensou em contar ao homem algumas das suas teorias sobre a prisão, mas não disse nada. Em vez disso assentiu e concentrou-se em parecer devidamente arrependido.
                - Diz aqui que tem mulher, Sombra.
                - Ela chama-se Laura.
                - E como vai isso?
                - Muito bem. Ela vem aqui ver-me sempre que pode, é uma viagem longa. Escrevemos um ao outro e eu ligo-lhe quando posso.
                - O que faz a sua mulher?
                - É agente de viagens. Envia pessoas a todo o mundo.
                - Como a conheceu?
                Sombra não conseguia perceber a razão de o homem querer saber. Pensou dizer-lhe que ele não tinha nada a ver com isso e depois disse:
                - Ela era a melhor amiga da mulher do meu melhor amigo. Eles organizaram um encontro. Nós gostámos um do outro.
                - E tem um emprego à sua espera?
                - Sim, senhor. O meu amigo Robbie, aquele de quem lhe falei, ele é dono da Muscle Farm, onde eu treinava. Ele diz que ainda tenho o meu antigo emprego.
                Uma sobrancelha levantou-se. – A sério?
                - Diz que acha que vou atrair muita gente. Que vou trazer alguns antigos cronometristas e atrair gente dura que quer ser mais dura.
                O homem parecia satisfeito. Mastigou a ponta da sua esferográfica, depois virou a folha de papel.
                - O que acha da sua ofensa?
                Sombra encolheu os ombros. – Fui estúpido – disse ele, e com sinceridade.
                O homem com a marca de nascença expirou. Pôs vistos alguns itens numa lista. Depois folheou depressa alguns papeis no ficheiro de Sombra. – Como vai daqui para casa? – Perguntou. – De galgo?
                - Vou de avião. É bom ter uma mulher que é agente de viagens.
                O homem franziu as sobrancelhas e a marca de nascença dobrou-se.
                - Ela enviou-lhe um bilhete?
                - Não foi preciso. Enviou-me apenas um número de confirmação. Um bilhete electrónico. Tudo o que tenho de fazer é aparecer no aeroporto daqui a um mês e mostrar o meu B.I. e saio de lá.
                O homem assentiu, rabiscou uma última nota, depois fechou o ficheiro e pousou a esferográfica. Duas mãos pálidas instalaram-se na secretária cinzenta como animais cor-de-rosa. Ele juntou mais as suas mãos, fez uma forma de torre com os dedos indicadores e olhou fixamente para Sombra com os seus olhos avelã aguados.
                - Tem sorte, - disse ele. – Tem alguém para quem voltar, tem um emprego à sua espera. Pode por isto tudo para trás. Tem uma segunda oportunidade. Aproveite-a ao máximo.
                O homem não apertou a mão a Sombra quando este se levantou, nem Sombra esperava que o fizesse.
                A última semana foi a pior. Em alguns aspectos, foi pior do que todos os três anos juntos. Sombra perguntou-se se seria devido ao tempo: opressivo, monótono e frio. Parecia que estava uma tempestade a caminho, mas a tempestade nunca chegou. Sentia-se nervoso e desconfortável, uma sensação no fundo do estômago que lhe dizia que algo estava muito errado. No campo de exercício surgiram rajadas de vento. Sombra imaginou que conseguia sentir o cheiro a neve no ar.
                Ele telefonou à sua mulher, calmo. Sombra sabia que as empresas de telefones cobravam uma taxa suplementar de três dólares em todas as chamadas feitas a partir de um telefone da prisão. Era por isso que os operadores eram sempre tão educados para as pessoas que telefonavam das prisões, decidiu Sombra: eles sabiam que ele lhes pagava o ordenado.
                - Alguma coisa parece estranha – disse ele a Laura. Não foi essa a primeira coisa que lhe disse. A primeira coisa foi “amo-te”, porque é uma coisa agradável de dizer se for sincero e para Sombra era.
                - Olá. – Disse Laura. – Também te amo. O que te parece estranho?
                - Não seii. – Disse ele – Talvez seja o tempo. Parece que se houvesse uma tempestade ficava tudo bem.
                - Aqui está bom. – Disse ela. – As últimas folhas ainda não caíram todas. Se não houver uma tempestade ainda vais conseguir vê-las quando chegares a casa.
                - Cinco dias. – Disse Sombra.
                - Cento e vinte horas e vens para casa. – Disse ela.
                - Está tudo bem aí? Não se passa nada?
                - Está tudo bem. Vou ter com o Robbie hoje à noite. Estamos a planear a tua festa surpresa de boas-vindas.
                - Uma festa surpresa?
                - Claro. Não sabes nada sobre isto, pois não?
                - Nada.
                - É assim mesmo. – Disse ela. Sombra apercebeu-se de que estava a sorrir. Já estava lá dentro há três anos, mas ela ainda conseguia fazê-lo sorrir.
                - Amo-te, querida. – Disse Sombra.
                - Amo-te, cãozinho. – Disse Laura.
                Sombra desligou o telefone.
                Quando se casaram, Laura disse a Sombra que queria um cão, mas o senhorio disse-lhes que o contrato de arrendamento não permitia animais domésticos.
                - Não faz mal. - Disse Sombra – Eu passo a ser o teu cãozinho. O que queres que faça? Que mastige os teus chinelos? Que mije no chão da cozinha? Que te lamba o nariz? Que cheire as tuas virilhas? Aposto que não há nada que um cão saiba fazer que eu não saiba! – E pegou nela como se não pesasse nada e começou a lamber o seu nariz ao mesmo tempo que ela dava gargalhadas e guinchava e depois levou-a para a cama.
                Na fila da cantina Sam Fetisher aproximou-se de Sombra e sorriu, exibindo os seus dentes velhos. Sentou-se ao lado de Sombra e começou a comer o seu macarrão com queijo.
                - Temos de falar. – Disse Sam Fetisher.
                Sam Fetisher era um dos homens mais negros que Sombra alguma vez tinha visto. Podia ter sessenta anos. Podia ter oitenta. Todavia, Sombra já tinha conhecido drogados de trinta anos que pareciam mais velhos do de Sam Fetish.
                - Mhm? – Disse Sombra.
                - Está a aproximar-se uma tempestade. – Disse Sam.
                - Parece. – Disse Sombra – Talvez neve em breve.
                - Não é esse tipo de tempestade. Estão a chegar tempestades maiores do que essas. Estou a dizer-te, rapaz, ficas melhor aqui do que lá fora na rua quando chegar a tempestade.
                - Já cumpri a minha pena. – Disse Sombra. – Na Sexta-Feira vou-me embora.
                Sam Fetish fixou o seu olhar em Sombra. – De onde és? – Perguntou ele.
                - Eagle Point. Indiana.
                - És um cabrão mentiroso. – Disse Sam Fatisher. – Quero dizer as tuas origens. De onde são os teus pais?
                - Chicago. – Disse Sombra. A sua mãe tinha vivido em Chicago em criança e tinha morrido lá há meia vida atrás.
                - Tal como disse. Aproxima-se uma grande tempestade. Fica no teu canto, Rapaz-Sombra. Parece… como se chamam aquelas coisas em que se apoiam os continentes? Uma espécie de placas?
                - Placas tectónicas? – Arriscou Sombra.
                - É isso. Placas tectónicas. É como quando elas se mexerem, quando a América do Norte deslizar para a América do Sul, não vais querer estar no meio. Entendes?
                - Nem um bocadinho.
                Um olho castanho fechou-se num pestanejar lento. – Bem, então não digas que não te avisei. – Disse Sam Fetisher, e levou um pedaço de gelatina de laranja tremente à boca.
                - Não digo.
                Sombra passou a noite meio acordado, a adormecer e a acordar, a ouvir o seu colega de cela resmungar e ressonar na cama debaixo dele. A várias celas de distância um homem queixava-se e uivava e chorava como um animal e, de vez em quando, alguém lhe gritava para se calar. Sombra tentou não ouvir. Deixou que os minutos vazios passassem por ele, solitários e vagarosos.
                Faltavam dois dias. Quarenta e oito horas que começaram aveia e café da prisão e um guarda chamado Wilson que deu uma palmada no ombro de Sombra com mais força do que era necessário e disse:
                - Sombra? Por aqui.
                Sombra revistou a sua consciência. Estava calma, o que não significava, como tinha reparado, numa prisão, que não estava metido em sarilhos. Os dois homens andaram mais-ou-menos lado a lado, os seus pés ecoavam no metal e no cimento.
                Sombra sentiu o medo na garganta, tão amargo como café velho. A coisa má estava a acontecer…
                Havia uma voz na sua cabeça a sussurrar que lhe iam acrescentar mais um ano à sentença, pô-lo na solitária, cortar-lhe as mãos, cortar-lhe a cabeça. Ele disse a si próprio que estava a ser estúpido, mas o seu coração estava a bater acelerado, quase a saltar-lhe do peito.
                - Não te percebo, Sombra. – Disse Wilson enquanto andavam.
                - O que não percebe, senhor?
                - Não te percebo a ti. És calado demais, caramba. Educado demais. Esperas como os velhos, mas tens o quê? Vinte e cinco anos? Vinte e oito?
                - Trinta e dois, senhor.
                - E o que és tu? Latino? Cigano?
                - Não que saiba, senhor. Talvez.
                - Se calhar descendes de pretos. Descendes de pretos, Sombra?
                - Talvez, senhor. – Sombra endireitou-se e olhou directamente para a frente e concentrou-se em não deixar que o homem o irritasse.
                - Ai é? Bem, o que sei é que me assustas como o caraças. – Wilson tinha cabelo louro sujo e uma cara amarela como a areia e um sorriso amarelo como a areia. – Vais deixar-nos daqui a pouco.
                - Espero que sim, senhor.
                Os dois passaram por alguns pontos de vigia. Wilson mostrou sempre a sua identificação. Subiram um lanço de escadas e chegaram à porta do escritório do director da prisão. Tinha o nome do director da prisão, G. Patterson, na porta em letras pretas e, ao lado da porta, uma miniatura de um semáforo.
                A luz superior vermelha estava ligada.
                Wilson premiu um botão debaixo do semáforo.
                Ficaram ali em silêncio alguns minutos. Sombra tentou convencer-se de que estava tudo bem, que na Sexta-Feira de manhã estaria num avião a caminho de Eagle Point, mas não acreditava em si.
                A luz vermelha apagou-se e a verde ligou-se e Wilson abriu a porta. Entraram.
                Sombra tinha visto o escritório do director da prisão algumas vezes nos últimos três anos. Uma vez ele andava a mostrar as instalações a um político. Uma vez, durante um bloqueio, o director tinha falado com eles em grupos de cem para dizer que a prisão tinha gente a mais e, dado que ia continuar a ter gente a mais, o melhor era habituarem-se a isso.
                Visto de perto, Patterson tinha pior aspecto. A sua cara era rectangular com cabelo cinzento cortado em estilo militar. Cheirava a Old Spice. Atrás dele estava uma estante com livros, todos com a palavra Prisão no título; a sua secretária estava limpa na perfeição, vazia com a excepção de um telefone e um calendário que permitia arrancar as folhas Far Side. Ele tinha um aparelho auditivo no ouvido esquerdo.
                - Sente-se, por favor.
                Sombra sentou-se. Wilson ficou de pé atrás dele.
                O director abriu uma gaveta da secretária e tirou de lá um ficheiro, colocando-o depois na sua secretária.
                - Diz aqui que foi condenado a seis anos por assalto á mão armada e agressão. Cumpriu três anos da pena. Devia ser libertado na Sexta-Feira.
                Devia? Sombra sentiu o estômago a revirar-se dentro dele. Perguntou-se quanto mais tempo teria de cumprir pena. Outro ano? Dois anos? Os três restantes? Tudo o que disse foi “Sim, senhor”.
                O director passou a língua pelos lábios. – O que disse?
                - Eu disse “sim, senhor”.
                - Sombra, vamos libertá-lo esta tarde. Vai sair dois dias mais cedo. – Sombra assentiu e esperou pela parte má. O director desviou o olhar para o papel na sua secretária.
                - Isto chegou do Johnson Memorial Hospital em Eagle Point… A sua mulher. Ela faleceu nas primeiras horas da manhã de hoje. Foi um acidente de automóvel. Lamento.
                Sombra assentiu mais uma vez.
                Wilson acompanhou-o até à sua cela, sem dizer nada. Destrancou a porta da cela e deixou Sombra entrar. Depois disse:
                - É uma daquelas piadas da boa notícia e da má notícia, não é? A boa notícia é que o vamos deixar sair mais cedo, a má é que a sua mulher morreu. – Ele riu-se como se tivesse mesmo piada.
                Sombra não disse uma palavra.