Mostrar mensagens com a etiqueta neil gaiman. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta neil gaiman. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Neil Gaiman: O Guia de um Zé Ninguém nos Óscares

Alguns escritores estavam zangados por não irem aos Óscares. Uns amigos contaram-me. "Então, tu vais?", perguntaram eles.

Eu tinha escrito um livro chamado Coraline e a Porta Secreta que o realizador Henry Selick tinha transformado numa maravilha em stop-motion. Tinha ajudado o Henry o mais que pude durante todo o processo de transformar algo de um livro num filme. Tinha apoiado o filme, encorajado as pessoas a ir vê-lo, cravado botões num trailer na internet. Tinha escrito um segmento de 15 segundos para os Óscares no qual a Coraline dizia a um jornalista que impacto teria na sua vida ganhar um Óscar. Achei que isso seria o suficiente para me levar aos Óscares. Não foi. Porém, o Henry, na qualidade de realizador, tinha bilhetes e podia decidir a quem entregá-los e entregou-me um deles.



O meu pai tinha falecido no dia 7 de março de 2009. Os Óscares deste ano foram no dia 7 de março. Esperava que fosse um dia como os outros e que isso não me incomodasse nada, o que demonstra que não me conheço a mim próprio muito bem porque, quando chega o dia, sou a personificação da melancolia e não quero ir aos Óscares. Quero ficar em casa, passear na floresta com o meu cão e se pudesse simplesmente carregar num botão e ficar lá sem desiludir ninguém, era o que fazia.

Visto-me. Uma estilista chamada Kambriel, que conheci quando fez um vestido que permitisse que a minha noiva e o Jason Webley representassem gémeos siameses, tinha-se oferecido para me vestir para os Óscares e eu aceitei a oferta. Ela fez-me um blazer e um colete e até acho que eles me ficam bem. E o melhor de tudo é que agora tenho uma resposta para as pessoas que me perguntam: "O que vais usar nos Óscares?" E isso deixa a Kambriel muito feliz.

A Focus Films, que distribuiu Coraline está a tratar bem de mim. Na noite de véspera dos Óscares deram uma pequena festa no Chateau Marmont para os seus dois nomeados: Coraline e Um Homem Sério. Os convidados eram uma mistura estranha de judeus de Minneapolis e de animadores. E ainda mais estranho era o facto de eu ser um dos judeus de Minneapolis (ou quase: acabei por comparar apontamentos com um dos convidados que serviram para um artigo explosivo para o jornal de St. Paul que denunciava que afinal vivo a uma hora de Minneapolis).

A melhor parte dos Óscares, apercebi-me disto quando anunciaram os nomeados, é que Coraline não vai ganhar o prémio de melhor filme de animação. Nada para além de Up- Altamente pode vencer o prémio de melhor filme de animação.

Uma limusine vem buscar-me às 15:00 e vamos para os Óscares. Vamos devagar: as ruas estão fechadas. Os últimos civis que vemos estão numa esquina a segurar em cartazes que dizem que Deus Odeia Gays, que os terramotos recentes são a Forma Espacial de Deus de Odiar Gays e que os Judeus Roubaram alguma coisa, mas não consegui ver bem o quê porque estava outro cartaz a tapar essa parte.

Quando estamos a um bairro de distância do Kodak Theatre, o carro é revistado e depois chegamos lá e atiram-me para a carpete vermelha. Alguém coloca um recibo na minha mão para encontrar o carro mais tarde.

É um caos controlado.

Estou especado ali no meio e apercebo-me de que não faço ideia do que tenho de fazer agora, mas as mulheres parecem borboletas e há pessoas nas bancadas que gritam sempre que uma limusine chega. Alguém chama: "Neil?"

É a Deette da Focus. "Acabei de levar o Henry. Que bela coincidência. Queres que te leve?"

Quero muito. Ela pergunta se quero passar pelas câmaras e eu digo que sim porque a minha noiva está na Austrália e as minhas filhas estão a ver a cerimónia na televisão e a Kambriel vai ficar feliz por ver o blazer dela na televisão.



Caminhamos pela multidão atrás de alguém com um vestido bonito. Parece uma aguarela de um sonho. Não reconheço ninguém, exceto o Steve Carrell porque ele é exatamente igual ao Steve Carrell da televisão, só que é um bocadinho menos cor-de-laranja.

Arrumam-nos como sardinhas enlatadas quando passamos pelos detetores de metal e alguém pisa o vestido de aguarela bonito e a senhora que o está a usar é muito cortês quando isso acontece.

Pergunto à Deette quem está dentro do vestido e ela diz-me que é a Rachel McAdams. Quero cumprimentá-la (a Rachel disse coisas simpáticas sobre mim em algumas entrevistas), mas ela agora está a trabalhar. Eu não. Ninguém quer tirar-me fotografias, nem, descobre a Deette, entrevistar-me. Sou invisível.

Paramos na curva da carpete vermelha. Observo o vestido de aguarela da Rachel McAdams e pergunto-me se consigo ver a marca de um sapato. As câmaras disparam, mas não na minha direção.

E entramos no Kodak Theatre. Uma pessoa apresenta-me ao editor da revista Variety. Apercebo-me de que as minhas competências de reconhecimento facial não funcionam quando as pessoas estão a usar fatos (com a exceção do James Cameron que até hoje nunca vi sem um fato e não reconheceria se estivesse a usar outra coisa). Digo isto ao editor da Variety. Ele aponta para um homem bronzeado e com um grande sorriso, diz-me que é o Mayor de Los Angeles. "Ele vem a estas coisas todas", diz ele. "Porque é que não está atrás da secretária a trabalhar?"

"Er. Porque este é maior dia do ano em Hollywood?" Aventuro-me. "E é domingo?"

"Bem. Sim, Mas ele só aparece quando se abre o armário das bebidas".

Tinha ido aos Globos de Ouro seis semanas antes e descobri que os intervalos nas cerimónias de entrega de prémios são passados numa forma estranha de speed-dating em massa de Hollywood, já que as pessoas andam pela sala a tentar encontrar amigos ou fechar negócios e assumo que esta noite seja igual.

O Kodak Theatre tem um andar térreo e, acima dele, três mezaninos. O meu bilhete é para o primeiro mezanino. Subo, como uma ovelha, as escadas. As pessoas esmagam-se para entrar à medida que uma voz incorpórea nos diz com urgência que os prémios da Academia começam daí a 5 minutos. Olho especado para a mulher à minha frente. Ela tem cabelo louro e uma cara que se parece estranhamente com um peixe, uma cara de plástico assustadora e doce ao mesmo tempo. Ele tem mãos velhas e um marido pequeno e enrugado que parece ser muito mais velho do que ela. Pergunto-me se tinham a mesma idade quando se casaram.

E estamos aqui, sem tempo a perder. As luzes apagam-se e o Neil Patrick Harris canta uma canção especial para os Óscares. Parece que não tem melodia. Várias pessoas no Twitter que não souberam distinguir os dois Neils felicitam-me pelo número.

E agora os nossos anfitriões: Steve Martin e Alec Baldwin. Eles apresentam-se e dizem piadas. A partir do primeiro mezanino, o timing não parece certo, as piadas são constrangedoras, a forma como são ditas é rígida. Mas não parece que estão a atuar para nós. Pergunto-me se aquilo funciona na televisão e faço essa pergunta no Twitter. Algumas centenas de pessoas dizem-me que é tão mau na televisão como o que estou a ver, 20 dizem-me que estão a gostar. Chego à conclusão de que o Twitter serve para isto: fazer-nos companhia quando estamos completamente sozinhos no mezanino.

O melhor filme de animação é a segunda categoria da noite. Os meus 15 segundos da Coraline a falar para a câmara passam depressa. Aí está, penso eu. A maior audiência que as minhas palavras alguma vez vão ter. Up vence.



Os Óscares continuam. No público não conseguimos ver o que se vê na televisão em casa. Algures abaixo de mim, o George Clooney está a fazer caretas para a câmara, mas eu não sei.

A Tina Fey e o Robert Downey Jr. apresentam o prémio de melhor argumento e têm piada. Pergunto-me se escreveram o segmento deles.

Durante o intervalo, as luzes diminuem e começam a tocar uma música própria para conviver. A Roxanne não tem de ligar a luz vermelha.

Dirijo-me ao bar do primeiro mezanino. Tenho fome e quero matar algum tempo. Bebo whisky. Peço um brownie de chocolate que descubro que é quase tão grande como a minha cabeça e a coisa mais doce que alguma vez coloquei na minha boca. Partilho-o.

As pessoas sobem e descem as escadas sem rumo.

Com o whisky e o açúcar a repararem o meu sistema, desafio as ordens escritas no meu bilhete que dizem para não fotografar nada e envio uma fotografia do menu do bar para o Twitter. A minha noiva está a enviar-me mensagens no Twitter onde me pede para fotografar o interior da casa-de-banho das senhoras, algo que ela fez nos Globos de Ouro, mas mesmo no meu estado carcomido pelo açúcar, aquela parece-me uma ideia potencialmente desastrosa. Ainda assim, penso, devia descer as escadas e cumprimentar o Henry Selick no intervalo seguinte. Desço as escadas. Um jovem simpático de fato pede-me o meu bilhete. Eu mostro-lhe. Ele explica que, na qualidade de residente do primeiro mezanino, não tenho permissão para descer as escadas e potencialmente incomodar os VIP's.

Fico revoltado.

Na verdade, não estou revoltado, mas fico um pouco aborrecido e tenho amigos lá em baixo.

Decido que vou convencer os habitantes dos mezaninos a fazerem uma revolução e a invadirem as escadas como no Titanic. Podem disparar contra alguns de nós, penso eu, mas não nos podem travar a todos. Podemos ser livres: podemos beber no bar lá em baixo, podemos conviver com o Harvey Weinstein.

Alguém me diz no Twitter que ninguém está a vigiar os elevadores. Suspeito que isso pode ser uma armadilha e regresso ao meu lugar.

Perdi o tributo aos filmes de terror.

A Rachel McAdams apresenta um prémio no seu vestido belo e tão na moda.

Nos prémios para o melhor ator e melhor atriz, um conjunto de pessoas que já trabalharam com os nomeados dizem-nos como são todos maravilhosos. Pergunto-me se aquilo funciona na televisão. No palco à nossa frente, é tão desajeitado que dói.

As pessoas em baixo estão a atropelar-se e a conversar e a bisbilhotar cada vez mais a cada intervalo. Começa a sentir-se uma ponta de pânico na voz incorpórea da anunciadora quando manda toda a gente regressar aos seus lugares.

O homem no bar que se parecia com o Sean Penn era mesmo o Sean Penn. A ovação em pé ao Jeff Bridges chega até ao último mezanino. A ovação em pé à Sandra Bullock só chega às filas da frente do nosso nível e para aí. A ovação em pé à Kathryn Bigelow chega a todo o auditório, exceto, por alguma razão, ao cimo do lado direito do primeiro mezanino, onde eu estou sentado e onde nos mantemos sentados e batemos palmas com cortesia.

Tudo parece estar a ganhar força para atingir o clímax e depois o Tom Hanks entra no palco e diz-nos, sem qualquer cerimónia (sem contar com os meses de campanha para os Óscares) que, ah, já agora, o Estado de Guerra venceu a categoria de melhor filme e boa noite. E acabou.

Subo dois lances de escadas para chegar ao baile do governador e sento-me a falar com o Michael Sheen (que trouxe a sua filha Lily de 11 anos) sobre o jantar de sushi que tivemos dois dias antes e foi interrompido por uma operação policial. Ainda não fazemos ideia porquê. (Na manhã seguinte vai ser uma notícia de primeira página no New York Times. Estavam a servir carne ilegal de baleia).

Vejo o Henry Selick. Ele parece estar aliviado por ter terminado a época de prémios e por poder prosseguir com a vida dele.

Parece-me que andei sonâmbulo e invisível num dos dias mais melancólicos da minha vida. Naquela noite há festas glamourosas, mas não vou a nenhuma e prefiro ficar sentado no lobby de um hotel com bons amigos. Falamos sobre os Óscares.

Na manhã seguinte, na última página do suplemento dos Óscares do Los Angeles Times há uma fotografia panorâmica enorme das pessoas na carpete vermelha. Com uma certa surpresa, encontro-me nela de pé mesmo no meio a olhar especado para o belo vestido de aguarela da Rachel McAdams, à procura de marcas de sapatos.


quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Excerto de "American Gods" de Neil Gaiman parte 2


Entorpecido, empacotou as suas posses, livrou-se da maioria. Deixou lá o Heródoto de Discreto e o livro dos truques de moedas e, com uma angústia momentânea, abandonou os discos de metal vazios que tinha roubado da oficina e que lhe tinham servido de moedas. Haveria moedas, moedas verdadeiras, lá fora. Barbeou-se. Vestiu roupas civis. Caminhou de porta em porta sabendo que nunca voltaria a passar por elas novamente, a sentir um vazio por dentro.
                A chuva tinha começado a cair com força do céu cinzento, uma chuva gelada. Bolinhas de gelo atacavam a cara de Sombra, enquanto a chuva encharcava o seu sobretudo à medida que se aproximavam do ex autocarro escolar amarelo que os levaria à cidade mais próxima.
                Quando chegaram ao autocarro estavam ensopados. Oito deles iam embora. Mil e quinhentos ainda estavam lá dentro. Sombra sentou-se no autocarro e tremeu até o aquecimento começar a funcionar, perguntou-se o que faria, para onde iria.
                Imagens fantasmagóricas encheram a sua mente de forma involuntária. Na sua imaginação estava a sair de outra prisão há muito tempo.
                Tinha estado preso numa divisão sem luz há demasiado tempo: a sua barba estava descontrolada e o seu cabelo estava todo emaranhado. Os guardas tinham-no conduzido por uma escadaria cinzenta e para uma praça cheia de coisas de cores garridas, com pessoas e objectos. Era dia de mercado e ele ficou ofuscado com todo o barulho e a cor, cego com a luz do sol que enchia a praça enquanto cheirava o ar salgado e todas as coisas boas do mercado e, à sua esquerda, o sol transmitia o seu brilho a partir da água…
                O autocarro deu um solavanco quando parou num sinal vermelho.
                O vento uivava à volta do autocarro e os pára-brisas afastavam torrentes de água com força para trás e para a frente no vidro fazendo com que a cidade parecesse um borrão de vermelho e amarelo molhados. A tarde estava a começar, mas parecia que já era noite através do vidro.
                - Merda. – Disse o homem no assento atrás de Sombra, enquanto limpava a condensação da janela com a mão e olhava para uma figura molhada que se apressava no passeio. – Há gajas lá fora.
                Sombra engoliu em seco. Ocorreu-lhe que ainda não tinha chorado, na verdade não tinha sentido nada. Não houve lágrimas, nem mágoa. Nada.
                Deu por si a pensar num tipo chamado Johnnie Larch, com quem tinha partilhado a cela nos primeiros tempos de prisão, que lhe tinha dito que uma vez tinha sido libertado após cinco anos atrás das grades com cem dólares e um bilhete para Seattle onde vivia a sua irmã.
                Johnnie Larch tinha chegado ao aeroporto e entregou o seu bilhete à mulher do balcão e ela pediu para ele apresentar a sua carta de condução. Ele mostrou-a. Tinha caducado dois anos antes. Ela disse-lhe que não era válida como documento de identificação. Ele disse-lhe que podia não ter validade como carta de condução, mas que servia muito bem como documento de identificação e, raios, quem raios é que ela pensava que ele era senão ele?
                Ela pediu-lhe para baixar o tom de voz.
                Ele exigiu-lhe o raio de um cartão de embarque ou ia arrepender-se e que não aceitava que lhe faltassem ao respeito. Ninguém deixa que haja falta de respeito na prisão.
                Depois ela carregou num botão e, passado pouco tempo, apareceu a segurança do aeroporto e tentaram persuadir Johnnie Larch a deixar o aeroporto sem mais confusões e ele não quis sair e houve uma espécie de desentendimento.
                O lado positivo de tudo isto foi que Johnnie Larch acabou por nunca chegar a Seattle e passou os dois dias seguintes nos bares da cidade e, quando acabaram os cem dólares, assaltou um posto de gasolina com uma arma de brincar para poder continuar a beber e a polícia acabou por o apanhar por estar a mijar na rua. Pouco depois já estava outra vez na choça para cumprir o resto da pena e ainda mais algum tempo pelo assalto à gasolineira.
                A moral desta história, de acordo com Johnnie Larch, era a seguinte: não chateies pessoas que trabalham em aeroportos.
                - Tens a certeza de que não é algo do género, “O tipo de comportamento que funciona num ambiente específico, como uma prisão, pode não funcionar e pode até tornar-se prejudicial quando usado fora de tal ambiente?” – Disse Sombra quando Johnnie Larch lhe contou a história.
                - Não, acredita nisto, estou a dizer-te, meu – disse Johnnie Larch – não chateies aquelas cabras dos aeroportos.
                Sombra esboçou um meio sorriso com essa recordação. Ainda faltavam muitos meses para a sua carta de condução caducar.
                - Central de camionagem! Saiam todos!
                O edifício tresandava a urina e cerveja amarga. Sombra entrou num táxi e disse ao motorista para o levar ao aeroporto. Acrescentou que lhe pagava mais cinco dólares se o fizesse em silêncio. Chegaram lá em vinte minutos e o motorista não disse uma palavra.
                Depois Sombra cambaleava pelo terminal bastante iluminado do aeroporto. Sombra estava preocupado com a questão do bilhete electrónico. Sabia que tinha um bilhete para um voo na Sexta-Feira, mas não sabia se o poderia usar naquele dia. Tudo o que era electrónico parecia fundamentalmente mágico para Sombra e passível de evaporar a qualquer momento.
                Ainda assim, ele tinha a sua carteira, estava de novo em sua posse pela primeira vez em três anos e continha vários cartões de crédito caducados e um cartão Visa que lhe tinha feito a surpresa agradável de só caducar no final de Janeiro. Tinha um número de reserva e apercebeu-se que tinha a certeza de que, assim que voltasse a casa, tudo se resolveria de alguma forma. A Laura estaria bem outra vez. Talvez fosse algum esquema para o fazer voltar para casa uns dias antes. Ou talvez fosse uma simples confusão: tinha sido o corpo de outra Laura Lua o que retiraram dos destroços na auto-estrada.
                Relâmpagos tremeluziam do lado de fora do aeroporto, pelas janelas. Sombra apercebeu-se de que estava a suster a respiração, à espera de algo. Um estrondo distante de trovoada. Expirou.
                Uma mulher branca cansada olhou fixamente para ele atrás do balcão.
                - Olá. – Disse Sombra. É a primeira mulher desconhecida com quem falo em pessoa em três anos. – Tenho o número de um bilhete electrónico. Era para viajar na Sexta-Feira, mas tenho de ir hoje. Morreu uma pessoa na minha família.
                - Mhm. Lamento. – Ela escreveu algo com o teclado, olhou para o ecrã, voltou a escrever. – Não há problema. Está no voo das 15:30. Pode sofrer atrasos devido à tempestade, por isso esteja atento aos ecrãs. Vai levar bagagem no porão?
                Ele mostrou a sua mochila. – Não tenho de levar isto no porão, pois não?
                - Não. – Disse ela. – Não é preciso. Tem alguma identificação com fotografia?
                Sombra mostrou-lhe a sua carta de condução.
                Não era um aeroporto grande, mas a quantidade de pessoas que ali vagueavam, simplesmente vagueavam, maravilhou-o. Observou pessoas descontraídas a pousar as suas malas, carteiras enfiadas em bolsos de trás, viu bolsas pousadas, sem serem vistas, debaixo de cadeiras. Foi aí que se apercebeu de que já não estava na prisão.
                Trinta minutos de espera até ao embarque. Sombra comprou uma fatia de pizza e queimou o lábio no queijo quente. Pegou nos seus trocos e foi aos telefones. Telefonou a Robbie na Muscle Farm, mas foi para as mensagens.
                - Olá, Robbie. – Disse Sombra. – Disseram-me que a Laura morreu. Deixaram-me sair mais cedo. Vou a caminho de casa.
                Depois, porque as pessoas têm tendência a cometer erros, já tinha visto isso a acontecer, ligou para casa e ouviu a voz de Laura.
                - Olá. – Disse ela. – Não estou aqui ou não posso atender agora. Deixem uma mensagem e eu ligo. E tenham um bom dia.
                Sombra não teve coragem de deixar uma mensagem.
                Sentou-se numa cadeira de plástico perto da porta de embarque e ao mesmo tempo segurava a sua mochila com tanta força que lhe doía a mão.
                Estava a pensar na primeira vez em que tinha visto Laura. Nem sequer sabia o seu nome na altura. Ela era a melhor amiga de Audrey Burton. Estava sentado com Robbie numa cabine do restaurante Chi-Chi quando Laura entrou um passo ou perto disso atrás de Audrey, e Sombra deu por si a olhar fixamente. Ela tinha cabelo longo e cor de avelã e uns olhos tão azuis que Sombra pensou por engano que ela estava a usar lentes de contacto coloridas. Ela pediu um daiquiri de morango e insistiu para que Sombra o provasse e riu-se com deleite quando ele o fez.
                Laura adorava fazer as pessoas provar o que ela provava.
                Ele deu-lhe um beijo de boa noite, nessa noite, e ela sabia a daiquiri de morango, e ele nunca mais quis beijar outra pessoa.
                Uma mulher anunciou que o seu avião estava pronto para o embarque e a fila de Sombra foi a primeira a ser chamada. Ele ficou no fundo do avião com um lugar vazio ao seu lado. A chuva batia de forma contínua no avião: ele imaginou crianças pequenas a atirar mãos cheias de ervilhas secas do céu.
                Assim que o avião descolou, adormeceu.
                Sombra estava num sítio escuro e a coisa que estava a olhar para ele tinha uma cabeça de búfalo, espessa e peluda com uns olhos molhados enormes. O seu corpo era de homem, oleado e lustroso.
                - Vêm aí mudanças. – Disse o búfalo sem mexer os lábios. – Certas decisões terão de ser tomadas.
                Luz de fogo tremeluziu vinda das paredes molhadas da caverna.
                - Onde estou? – Perguntou Sombra.
                - Na Terra e debaixo da Terra. – Disse o homem búfalo. – Estás onde esperam os esquecidos. – Os seus olhos era berlindes pretos líquidos e a sua voz um estrondo vindo de debaixo do mundo. Cheirava a vaca molhada. – Acredita. – Disse a voz estrondosa. – Se quiseres sobreviver, tens de acreditar.
                - Acreditar em quê? – Perguntou Sombra. – Em que devo acreditar?
                Ele olhou fixamente para Sombra, o homem búfalo, e fez-se gigante, e os seus olhos encheram-se de fogo. Abriu a sua boca de búfalo salpicada de saliva e era vermelha por dentro com as chamas que ardiam dentro dele, debaixo da Terra.
                - Em tudo. – Rosnou o homem búfalo.
                O mundo tremeu e girou e Sombra estava outra vez no avião; mas o tremer continuava. Na parte da frente do avião uma mulher gritava meia encorajada.
                Os relâmpagos rebentavam com uma luz cegante por todo o avião. O capitão surgiu no interlocutor para dizer que ia tentar ganhar alguma altitude para fugir da tempestade.
                O avião foi sacudido e estremeceu e Sombra perguntou-se de forma fria e despreocupada, se morreria. Parecia possível, mas pouco provável. Olhou pela janela e viu os relâmpagos iluminarem o horizonte.
                Depois adormeceu outra vez e sonhou que estava de novo na prisão e que o Discreto lhe tinha dito em segredo na fila da comida que alguém tinha um contrato pela vida dele, mas que Sombra não podia descobrir quem ou porquê. Quando acordou, estavam a aterrar.
                Saiu a cambalear do avião e a piscar os olhos até estar completamente acordado.
                Tinha a ideia de que todos os aeroportos tinham o mesmo aspecto. Não importava onde estava, estava num aeroporto: azulejos e passagens pedonais e quartos de banho e portas e quiosques e luzes florescentes. Este aeroporto parecia um aeroporto. O problema é que não era a este aeroporto que queria chegar. Este aeroporto era grande, com demasiadas pessoas e demasiadas portas de embarque.
                - Desculpa, senhora?
                A mulher olhou para ele por cima do bloco de notas. – Sim?
                - Que aeroporto é este?
                Ela olhou para ele, confusa, a tentar decidir se ele estava ou não a brincar, depois disse, - St. Louis.
                - Pensava que este avião ia para Eagle Point.
                - E ia. Eles desviaram a rota para aqui devido ás tempestades. Não anunciaram isso?
                - É provável. Eu adormeci.
                - Tem de falar com aquele homem ali de casaco vermelho.
                O homem era quase tão alto como sombra: parecia o pai de uma sitcom dos anos setenta e escreveu algo no computador e disse a Sombra para correr – corra! – para uma porta de embarque do outro lado do terminal.
                Sombra correu por todo o aeroporto, mas a porta de embarque já estava fechada quando lá chegou. Viu o avião a afastar-se da porta, através da janela.
                A mulher da secretária de apoio ao passageiro (pequena e castanha, com uma verruga num dos lados do nariz) consultou outra mulher e fez uma chamada. (“Não, esse já não dá. Acabaram de o cancelar”.) Depois imprimiu outro cartão de embarque.
                - Com isto pode embarcar. – Disse-lhe. – Vamos ligar com antecedência para a porta de embarque e dizer-lhes que o senhor está a caminho.
                Sombra sentiu-se como uma ervilha a ser trocada entre três copos, ou uma carta a ser baralhada. Mais uma vez correu por todo o aeroporto, acabando perto de onde tinha saído do avião.
                Um homem pequeno na porta de embarque pegou no seu cartão de embarque. – Estamos à sua espera. – Confidenciou, enquanto rasgava a ponta do cartão de embarque, com o lugar de Sombra (17-D) aí imprimido. Sombra foi depressa para o avião e fecharam a porta atrás dele.
                Passou pela primeira classe sem parar – havia apenas quatro lugares na primeira classe, três deles estavam ocupados. O homem barbudo num fato pálido que estava sentado ao lado do lugar desocupado na frente de todo, deu um sorriso largo a Sombra quando este entrou no avião, depois levantou o seu pulso e bateu de leve no relógio, enquanto Sombra passava por ele.
                Pois, pois. Estou a atrasá-lo, pensou Sombra. Que seja esse o seu maior problema.
                O avião parecia estar bastante cheio à medida que caminhava até ao fundo. Na verdade, descobriu Sombra, estava completamente cheio e estava uma mulher de meia idade sentada no lugar 17-D. Sombra mostrou-lhe o seu cartão de embarque e ela mostrou-lhe o dela: eram iguais.
                - Pode ir para o seu lugar, por favor? – Pediu a hospedeira.
                - Não. – Disse ele. – Infelizmente não posso.
                A hospedeira bateu com a língua no céu-da-boca e verificou os seus cartões de embarque, depois pediu a Sombra que a seguisse novamente até à frente do avião e indicou-lhe o lugar vazio na primeira classe.
                - Parece que é o seu dia de sorte. – Disse-lhe. – Quer que lhe traga algo para beber? Temos tempo agora antes da descolagem e tenho a certeza que precisa de uma bebida depois disto.
                - Pode ser uma cerveja, se faz favor. – Disse Sombra. – Qualquer marca serve.
                A hospedeira afastou-se.
                O homem do fato de cor pálida sentado ao lado de Sombra bateu no seu relógio com a unha. Era um Rolex preto.
                - Estás atrasado. – Disse o homem e esboçou um sorriso largo sem qualquer tipo de simpatia.
                - Desculpe?
                - Disse que estavas atrasado.
                A hospedeira levou um copo de cerveja a Sombra.
                Por um momento, ele perguntou-se se o homem era doido e depois chegou à conclusão de que ele se devia estar a referir ao avião, por estar à espera de mais um passageiro.
                - Peço desculpa se lhe atrasei a vida. – Disse ele de forma educada. – Está com pressa?
                O avião afastou-se da porta de embarque. A hospedeira voltou e tirou a cerveja a Sombra. O homem do fato de cor pálida fez-lhe um sorriso e disse: - Não se preocupe. Eu seguro bem isto. – E ela deixou-o manter o seu copo de whisky Jack Daniel’s, ao mesmo tempo que protestava, de forma pouco veemente, que tal violava as regras da companhia aérea. (“Deixe-me julgar isso por mim, minha cara”.)
                - O tempo é algo verdadeiramente importante, - disse o homem – mas não. Estava meramente preocupado com o facto de que não chegaria a tempo ao avião.
                - Foi simpático da sua parte.
                O avião estava irrequieto no chão, os motores vibravam ansiosos para trabalhar.
                - Simpático o tanas. – Disse o homem do fato de cor pálida. – Tenho um emprego para ti, Sombra.
                Um rugido de motores. O pequeno avião avançou, puxando Sombra para trás. Depois estavam no ar e as luzes do aeroporto afastavam-se debaixo deles. Sombra olhou para o homem sentado ao seu lado.
                O seu cabelo era uma espécie de cinzento avermelhado. Uma cara íngreme e quadrada com olhos cinzentos. O fato parecia caro e era da cor de gelado de baunilha derretido. A sua gravata era de seda cinzenta escura e o pin era uma árvore feita de prata: com tronco, ramos e raízes profundas.
                Segurou o seu copo de Jack Daniel’s enquanto descolavam e não entornou uma gota.
                - Não vais perguntar-me que tipo de emprego é? – Perguntou ele.
                - Como sabe quem eu sou?
                O homem deu uma risada. – Ah, saber o nome das pessoas é a coisa mais fácil do mundo. Um pouco de reflexão, um pouco de sorte, um pouco de memória. Pergunta-me que tipo de emprego.
                - Não. – Disse Sombra. A hospedeira levou-lhe outro copo de cerveja e ele bebeu-a com pequenos tragos.
                - Porque não?
                - Vou para casa. Tenho um emprego lá à minha espera. Não quero outro emprego.
                O sorriso íngreme não mudou na aparência, mas agora ele parecia sinceramente divertido.
                - Não tens um emprego à tua espera em casa. – Disse ele. – Não tens nada lá à tua espera. No entanto, eu estou a oferecer-te um trabalho perfeitamente legal com bom vencimento, segurança limitada, benefícios de parte incríveis. Raios, se chegares a viver muito, até te ofereço um plano de reforma. Achas que és capaz de querer uma destas coisas?
                Sombra disse: - Deve ter visto o meu nome na mala.
                O homem não disse nada.
                - Quem quer que seja, - disse Sombra – não podia saber que eu vinha para este avião. Nem eu sabia que vinha neste avião e se o meu avião não tivesse sido desviado para St. Louis, não estaria aqui. Parece-me que o senhor é um brincalhão. Talvez esteja à procura de algo. Mas acho que talvez seja melhor acabar com a conversa agora.
                O homem encolheu os ombros.
                Sombra pegou na revista do avião. O pequeno avião estremecia e dava solavancos pelo seu, algo que dificultava a concentração. As palavras flutuavam pela sua mente como bolas de sabão, desaparecendo por completo num momento.
                O homem ao seu lado estava calado a beber o seu Jack Daniel’s com pequenos tragos. Estava de olhos fechados.
                Sombra leu a lista dos canais de música disponíveis nos voos transatlânticos e depois olhou para o mapa do mundo com linhas vermelhas que informavam os destinos da companhia aérea. Depois terminou a leitura da revista e, com alguma resistência, fechou-a e voltou a colocá-la no bolso do banco da frente.
                O homem abriu os olhos. Os seus olhos tinham algo de estranho, pensou Sombra. Um deles era mais cinzento do que o outro. Ele olhou para Sombra.
                - Já agora, - disse ele – foi uma pena ouvir as notícias da tua mulher, Sombra. Foi uma grande perda.
                Aí, Sombra quase bateu no homem. Porém, em vez disso, respirou fundo. (-É como te digo, não chateies aquelas cabras dos aeroportos. – Disse Johnnie Larch na sua cabeça – Senão arrastam-te logo para a choça). Contou até cinco.
                - Também para mim. – Disse ele.
                O homem abanou a cabeça – Antes não tivesse de acontecer assim. – Disse ele e suspirou.
                - Ela morreu num acidente de automóvel, – disse Sombra – Há formas piores de morrer.
                O homem abanou a cabeça lentamente. Por um momento Sombra ficou com a impressão de que o homem não era substancial, de que o avião se tinha tornado mais real e o seu vizinho menos.
                - Sombra, - disse ele. – Não é uma brincadeira. Não é um truque. Posso pagar-te melhor do que vais conseguir ganhar em qualquer outro emprego. És um ex-condenado. Não vai haver uma fila grande de pessoas a atropelar-se para te contratar.
                - Senhor quem-raio seja, - disse Sombra, num tom suficientemente alto para se fazer ouvir por cima do ruído dos motores – não existe dinheiro suficiente no mundo”.
                O sorriso cresceu. Sombra deu por si a lembrar-se de um programa sobre chimpanzés da PBS. No programa diziam que quando os macacos ou os chimpanzés sorriam era uma forma de fazer uma careta em situações de ódio ou agressão ou terror. Quando um chimpanzé sorri, é uma ameaça.
                - Trabalha para mim. Pode ser um pouco arriscado, claro, mas se sobreviveres podes ter tudo o que desejas. Podes ser o próximo Rei da América. Bem, - disse o homem – quem mais é que te vai pagar tão bem, hmm?
                - Quem é o senhor? – Perguntou Sombra.
                - Ah, sim. A era da informação (menina, podia trazer-me outro copo de Jack Daniel’s? Não ponha muito gelo.), não que tenha existido outro tipo de era. Informação e conhecimento: uma moeda que nunca se extingiu.
                - Perguntei quem era.
                - Vamos ver. Bem, visto que hoje é mesmo o meu dia de sorte, porque não me chamas Quarta-Feira? Senhor Quarta-Feira. Se bem que, com este tempo, até que podia ser Quinta-Feira, não?
                - Qual é o seu nome verdadeiro?
                - Trabalha para mim tempo suficiente e bem o suficiente, - disse o homem do fato de cor pálida – e pode ser que até te diga. Aí está. Uma oferta de emprego. Pensa nisso. Ninguém espera que digas que sim imediatamente, sem saber se te estás a meter num tanque de piranhas ou numa caverna de ursos. Demora o tempo que for preciso. – Fechou os olhos e encostou-se no seu lugar.
                - Não me parece. – Disse Sombra. Não gosto do senhor. Não quero trabalhar consigo.
                - É como digo, - proferiu o homem sem abrir os olhos – não tenhas pressa. Demora o tempo que for preciso.
                O avião aterrou com um solavanco e alguns passageiros saíram. Sombra olhou pela janela: era um aeroporto pequeno no meio do nada e ainda faltavam mais dois aeroportos pequenos até chegar a Eagle Point. Sombra dirigiu o olhar para o homem do fato de cor pálida, o Sr. Quarta-Feira? Parecia estar a dormir.
                Impulsivamente, Sombra levantou-se, pegou na sua mala e saiu do avião, desceu a escada até chegar ao piso de asfalto molhado e caminhou com passos uniformes para as luzes do terminal. Uma chuva miúda salpicava-lhe a cara.
                Antes de entrar no aeroporto, parou, virou-se para trás e olhou. Mais ninguém tinha saído do avião. O pessoal de terra retirou a escada, a porta fechou-se e o avião descolou. Sombra entrou e alugou o que descobriu ser, quando chegou ao parque de estacionamento, um Toyota vermelho pequeno.
                Sombra desdobrou o mapa que lhe tinham oferecido e abriu-o no banco de passageiro. Eagle Point ficava a cerca de quatrocentos quilómetros de distância.
                As tempestades tinham terminado, se é que tinham chegado ali. O tempo estava frio e calmo. Algumas nuvens passaram pela Lua e, por um momento, Sombra não sabia se eram as nuvens ou a Lua que se moviam.
                Conduziu para norte durante uma hora e meia.
                Estava a ficar tarde. Ele tinha fome e, quando se apercebeu da fome que realmente tinha, saiu na próxima saída que encontrou e foi até à vila de Nottamun (População: 1301 pessoas). Encheu o depósito na Amoco e perguntou à mulher aborrecida na caixa registadora onde havia um sítio para comer.
                - Há o Bar Crocodilo do Jack. – Disse-lhe. – Fica a oeste daqui na estrada municipal N.
                - Bar Crocodilo?
                - Sim. O Jack diz que eles dão carácter ao sítio. – Ela desenhou um mapa na parte de trás de um folheto lilás. Este publicitava frango assado e os lucros iam para uma menina que precisava de um rim. – Ele tem dois crocodilos, uma cobra e daquelas coisas grandes parecidas com lagartos.
                - Uma iguana?
                - É isso.
                Depois de passar a vila e a ponte, seguiu em frente mais uns três quilómetros e parou em frente a um edifício rectangular baixo com um cartaz da cerveja Pabst.
                O parque de estacionamento estava meio vazio.
                Lá dentro, o ar estava cheio de fumo e na jukebox tocava “Walking After Midnight”. Sombra olhou à sua volta à procura dos crocodilos, mas não os viu. Perguntou-se se a mulher do posto de gasolina não estaria a gozar com ele.
                - O que vai ser? – Perguntou o barman.
                - A cerveja da casa e um hambúrguer com os extras todos. E baratas fritas.
                - Quer uma taça de chili de entrada? É o melhor chili do Estado.
                - Parece-me bem. – Disse Sombra. – Onde é a casa de banho?
                O homem apontou para uma porta num canto do bar. Havia um crocodilo de peluche colado na porta. Sombra entrou.
                Era uma casa de banho limpa e bem iluminada. Sombra olhou para toda a divisão primeiro; era do hábito. (“Lembra-te Sombra, não podes lutar quando estás a mijar.” – Disse Discreto, discreto como sempre na sua cabeça). Escolheu o urinol da esquerda. Depois abriu a braguilha e urinou durante muito tempo sentindo alívio. Leu os papéis amarelados fixados no quadro à sua frente, que tinha também uma fotografia de Jack com dois jacarés.
                Chegou um resmungo cortês do urinol à sua direita, apesar de ele não ter ouvido ninguém a entrar.
                O homem do fato de cor pálida era maior em pé do que parecia quando estava sentado no avião ao lado de Sombra. Era quase da altura de Sombra e Sombra era um homem alto. O homem estava a olhar para a frente. Acabou de urinar, sacudiu as últimas gotas e apertou a braguilha.
                Depois fez um grande sorriso, como uma raposa a comer merda numa cerca com arame.
                - Então, - disse o Sr. Quarta-Feira – já te dei algum tempo para pensar, Sombra. Queres um emprego?

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Excerto de "American Gods" de Neil Gaiman

 O texto original encontra-se aqui.
Primeira Parte

Sombras


As fronteiras do nosso país, senhor? Bem, senhor, a Norte fazemos fronteira com a Aurora Boreal, a Este com o Sol nascente, a Sul fazemos fronteira com a procissão de Equinócios e a Oeste com o Dia do Julgamento.

                Sombra tinha passado três anos na prisão. Ele tinha altura suficiente e um aspecto de “não te metas comigo” na quantidade certa, pelo que o seu maior problema era queimar tempo. Assim mantinha-se em forma e aprendia truques de moedas sozinho e pensava muito no quanto amava a sua mulher.
                A melhor parte – na opinião de Sombra, talvez a única parte boa – de estar na prisão, era a sensação de alívio. A sensação de que tinha chegado ao mais baixo que podia chegar e que tinha atingido o fundo. Não tinha a preocupação de ser apanhado pela autoridade, porque a autoridade já o tinha apanhado. Já não tinha medo do que o amanhã poderia trazer porque já o tinha trazido ontem.
                Não importava, decidiu Sombra, se tinha feito aquilo de que tinha sido acusado ou não. Na sua experiência, toda a gente que tinha conhecido na prisão estava ofendida com alguma coisa: havia sempre algum aspecto onde as autoridades tinham errado, algo que disseram que eles fizeram quando isso não aconteceu – ou não fizeram bem como eles disseram que tinham feito. O que importava era que os tinham apanhado.
                Ele tinha reparado nisso nos primeiros dias, quando tudo, desde a gíria até à má comida eram novidades. Apesar da miséria e do horror completo da encarceração, estava a respirar de alívio.
                Sombra tentou não falar demasiado. Algures em meados do segundo ano ele fez menção da sua teoria a Discreto Lyesmith, o seu colega de cela.
                Discreto, que era um vigarista do Minnesota, fez o seu sorriso assustado. – Pois. – Disse – Isso é verdade. Ainda é melhor quando se recebe a sentença de morte. Aí é que vêm à memória as anedotas sobre os tipos que tiravam as botas a pontapé quando lhes metiam o laço no pescoço porque os amigos sempre lhes disseram que iam morrer com as botas calçadas.
                - Isso é uma anedota? – perguntou Sombra.
                - Claro. Comédia de cadafalsos. É a melhor que existe.
                - Quando foi a última vez que enforcaram um homem neste Estado? – perguntou Sombra.
                - Como raio queres que eu saiba? – Lyesmith manteve o seu cabelo ruivo a fugir para o louro quase sempre rapado. Dava para ver os contornos do seu crânio. – Mas digo-te uma coisa. Este país começou a ir pelo cano abaixo quando pararam de enforcar pessoas. Não há pactos de enforcamento sem terra de enforcado.
                Sombra encolheu os ombros. Nunca viu nada romântico numa sentença de morte.
                Se não se estava condenado à morte, decidiu, então, a prisão era, no melhor dos casos, um retiro temporário da vida por duas razões. Primeiro, a vida escapa-se para a prisão. Há sempre lugares para descer mais abaixo. A vida continua. E, segundo, se aguentarmos, vai chegar o dia em que nos vão deixar sair.
                No início era algo que ainda estava longe demais para permitir que Sombra se concentrasse. Depois, tornou-se num raio de esperança distante e aprendeu a dizer a si mesmo: “também isto irá passar” quando acontecia merda na prisão, como sempre aconteceu. Um dia a porta mágica iria abrir-se e ele iria passar por ela. Assim, foi riscando os dias no seu calendário de Aves Canoras da América do Norte, que era o único calendário que vendiam na esquadra, e o Sol punha-se e ele não o via e o Sol nascia e ele não o via. Praticava truques de moedas com um livro que tinha encontrado no panorama desolador da biblioteca da prisão e fazia exercício e fazia listas na sua mente do que faria quando saísse da prisão.
                As listas de Sombra ficavam cada vez mais curtas. Após dois anos tinha-as reduzido a três coisas.
                Primeiro, ele iria tomar um banho. Seria um banho longo como devia ser numa banheira com bolhas. Talvez lesse o jornal ou talvez não. Havia dias em que pensava de uma maneira e outros doutra.
                Segundo, iria limpar-se com uma toalha, vestir um robe, talvez calçar uns chinelos. Ele gostava da ideia dos chinelos. Se fumasse, estaria a fumar um cigarro naquele momento, mas não fumava. Pegaria na sua mulher nos seus braços (“Cãozinho” - guincharia num terror fingido e com prazer verdadeiro – o que estás a fazer?). Ele levaria-a para o quarto e fecharia a porta. Encomendariam uma pizza se tivessem fome.
                Terceiro, depois de ele e Laura saírem do quarto, talvez uns dois dias após terem entrado, ele ia enfiar-se no seu canto e não se meter em mais sarilhos para o resto da vida.
                - E depois vais ser feliz? – Perguntou Discreto Lyesmith.
                Naquele dia estavam a trabalhar na loja da prisão, a juntar comedouros de aves, algo que era pouco mais interessante do que marcar matrículas de automóveis.
                - Não digas que um homem é feliz – disse Sombra – até ele estar morto.
                - Heródoto – disse Discreto. – Hei, estás a aprender.
                - Quem raio é o Heródoto? – Perguntou O Homem Gelo enquanto montava os lados de um comedouro e o passava a Sombra que o aferrolhou e aparafusou.
                - Um grego morto. – Disse Sombra.
                - A minha última namorada era grega – disse o Homem Gelo. – As merdas que a família dela comia. Nem dava para acreditar. Como arroz embrulhado em folhas. Merda dessa.”
                Homem Gelo tinha o mesmo tamanho e forma de uma máquina de refrigerantes, de olhos azuis e cabelo tão louro que era quase branco. Ele quase tinha desfeito um tipo que tinha cometido o erro de apalpar da sua namorada no bar onde esta dançava e o Homem Gelo era porteiro. Os amigos do tipo chamaram a polícia que prendeu o Homem Gelo e fez uma investigação que revelou que o Homem Gelo tinha fugido de um programa de trabalho condicional dezoito meses antes.
                - O que é que queriam que eu fizesse? – Perguntou o Homem Gelo, ofendido, quando tinha contado todo o conto triste a Sombra. – Eu tinha-lhe dito que ela era a minha namorada. Ia deixa-lo desrespeita-la daquela maneira? Ia? Quero dizer, ele apalpou-a toda.
                Sombra tinha dito – É assim mesmo – e tinha deixado aí o assunto. Uma coisa que ele tinha aprendido há algum tempo era que cada um cumpre a sua pena na prisão. Não se cumpre as penas de outras pessoas por elas.
                Fica no teu canto. Cumpre a tua pena.
                Lyesmith tinha emprestado uma cópia gasta de capa molde do “Histórias” de Heródoto há vários meses. -Não é aborrecido. É porreiro. - Disse ele quando Sombra protestou e disse que não lia livros. – Lê primeiro, depois diz-me se é porreiro”.
                Sombra fez uma cara feia, mas tinha começado a ler e deu por si viciado contra a sua vontade.
                 - Gregos – disse o Homem Gelo com repugnância. – E o que dizem sobre eles nem é verdade. Eu tentei fazê-lo no rabo da minha namorada e ela quase me arrancou os olhos.
                Lyesmith foi transferido um dia, sem aviso. Deixou a sua cópia de Heródoto a Sombra. Estavam uma moeda de cinco cêntimos escondida nas páginas. As moedas eram contrabando: pode-se afiar as pontas numa pedra e abrir a cara de alguém numa luta. Sombra não queria uma arma; Sombra queria apenas algo para fazer com as mãos.
                Sombra não era supersticioso. Não acreditava em nada que não conseguia ver. Ainda assim, ele conseguia sentir o desastre a pairar sobre a prisão nas últimas semanas, tal como o tinha sentido nos dias que antecederam o roubo. Havia um vazio no fundo do seu estômago que ele tentou interpretar simplesmente como o medo de voltar para o mundo lá fora. Porém, não podia ter a certeza. Estava mais paranóico do que o costume e na prisão o costume era muito e era uma ferramenta para a sobrevivência. Sombra ficou mais calmo, mas sombrio do que nunca. Deu por si a observar a linguagem corporal dos guardas, dos outros reclusos, à procura de uma pista para a coisa má que iria acontecer, como se tivesse a certeza que aconteceria.
                Um mês antes estava programado ser libertado. Sombra sentou-se num escritório gelado, de caras com um homem baixo com uma marca de nascença da cor do vinho do Porto na testa. Sentaram-se em lados opostos da secretária; o homem tinha o ficheiro de Sombra aberto à sua frente e segurava uma esferográfica. A ponta da esferográfica fora mastigada sem rodeios.
                - Tem frio, Sombra?
                - Sim, - disse Sombra – um pouco.
       O homem encolheu os ombros. – O sistema é assim – disse ele – as caldeiras só começam a funcionar no dia um de Dezembro. Não sou eu que faço as regras. – Ele percorreu com o seu dedo indicador a folha de papel agrafada no interior do lado esquerdo da pasta.
                - Tem trinta e dois anos?
                - Sim, senhor.
                - Parece mais novo.
                - Tenho uma vida limpa.
                - Diz aqui que tem sido um recluso modelo.
                - Aprendi a minha lição, senhor.
                - A sério? – Ele olhou para Sombra atentamente, a marca de nascença na sua testa foi para baixo. Sombra pensou em contar ao homem algumas das suas teorias sobre a prisão, mas não disse nada. Em vez disso assentiu e concentrou-se em parecer devidamente arrependido.
                - Diz aqui que tem mulher, Sombra.
                - Ela chama-se Laura.
                - E como vai isso?
                - Muito bem. Ela vem aqui ver-me sempre que pode, é uma viagem longa. Escrevemos um ao outro e eu ligo-lhe quando posso.
                - O que faz a sua mulher?
                - É agente de viagens. Envia pessoas a todo o mundo.
                - Como a conheceu?
                Sombra não conseguia perceber a razão de o homem querer saber. Pensou dizer-lhe que ele não tinha nada a ver com isso e depois disse:
                - Ela era a melhor amiga da mulher do meu melhor amigo. Eles organizaram um encontro. Nós gostámos um do outro.
                - E tem um emprego à sua espera?
                - Sim, senhor. O meu amigo Robbie, aquele de quem lhe falei, ele é dono da Muscle Farm, onde eu treinava. Ele diz que ainda tenho o meu antigo emprego.
                Uma sobrancelha levantou-se. – A sério?
                - Diz que acha que vou atrair muita gente. Que vou trazer alguns antigos cronometristas e atrair gente dura que quer ser mais dura.
                O homem parecia satisfeito. Mastigou a ponta da sua esferográfica, depois virou a folha de papel.
                - O que acha da sua ofensa?
                Sombra encolheu os ombros. – Fui estúpido – disse ele, e com sinceridade.
                O homem com a marca de nascença expirou. Pôs vistos alguns itens numa lista. Depois folheou depressa alguns papeis no ficheiro de Sombra. – Como vai daqui para casa? – Perguntou. – De galgo?
                - Vou de avião. É bom ter uma mulher que é agente de viagens.
                O homem franziu as sobrancelhas e a marca de nascença dobrou-se.
                - Ela enviou-lhe um bilhete?
                - Não foi preciso. Enviou-me apenas um número de confirmação. Um bilhete electrónico. Tudo o que tenho de fazer é aparecer no aeroporto daqui a um mês e mostrar o meu B.I. e saio de lá.
                O homem assentiu, rabiscou uma última nota, depois fechou o ficheiro e pousou a esferográfica. Duas mãos pálidas instalaram-se na secretária cinzenta como animais cor-de-rosa. Ele juntou mais as suas mãos, fez uma forma de torre com os dedos indicadores e olhou fixamente para Sombra com os seus olhos avelã aguados.
                - Tem sorte, - disse ele. – Tem alguém para quem voltar, tem um emprego à sua espera. Pode por isto tudo para trás. Tem uma segunda oportunidade. Aproveite-a ao máximo.
                O homem não apertou a mão a Sombra quando este se levantou, nem Sombra esperava que o fizesse.
                A última semana foi a pior. Em alguns aspectos, foi pior do que todos os três anos juntos. Sombra perguntou-se se seria devido ao tempo: opressivo, monótono e frio. Parecia que estava uma tempestade a caminho, mas a tempestade nunca chegou. Sentia-se nervoso e desconfortável, uma sensação no fundo do estômago que lhe dizia que algo estava muito errado. No campo de exercício surgiram rajadas de vento. Sombra imaginou que conseguia sentir o cheiro a neve no ar.
                Ele telefonou à sua mulher, calmo. Sombra sabia que as empresas de telefones cobravam uma taxa suplementar de três dólares em todas as chamadas feitas a partir de um telefone da prisão. Era por isso que os operadores eram sempre tão educados para as pessoas que telefonavam das prisões, decidiu Sombra: eles sabiam que ele lhes pagava o ordenado.
                - Alguma coisa parece estranha – disse ele a Laura. Não foi essa a primeira coisa que lhe disse. A primeira coisa foi “amo-te”, porque é uma coisa agradável de dizer se for sincero e para Sombra era.
                - Olá. – Disse Laura. – Também te amo. O que te parece estranho?
                - Não seii. – Disse ele – Talvez seja o tempo. Parece que se houvesse uma tempestade ficava tudo bem.
                - Aqui está bom. – Disse ela. – As últimas folhas ainda não caíram todas. Se não houver uma tempestade ainda vais conseguir vê-las quando chegares a casa.
                - Cinco dias. – Disse Sombra.
                - Cento e vinte horas e vens para casa. – Disse ela.
                - Está tudo bem aí? Não se passa nada?
                - Está tudo bem. Vou ter com o Robbie hoje à noite. Estamos a planear a tua festa surpresa de boas-vindas.
                - Uma festa surpresa?
                - Claro. Não sabes nada sobre isto, pois não?
                - Nada.
                - É assim mesmo. – Disse ela. Sombra apercebeu-se de que estava a sorrir. Já estava lá dentro há três anos, mas ela ainda conseguia fazê-lo sorrir.
                - Amo-te, querida. – Disse Sombra.
                - Amo-te, cãozinho. – Disse Laura.
                Sombra desligou o telefone.
                Quando se casaram, Laura disse a Sombra que queria um cão, mas o senhorio disse-lhes que o contrato de arrendamento não permitia animais domésticos.
                - Não faz mal. - Disse Sombra – Eu passo a ser o teu cãozinho. O que queres que faça? Que mastige os teus chinelos? Que mije no chão da cozinha? Que te lamba o nariz? Que cheire as tuas virilhas? Aposto que não há nada que um cão saiba fazer que eu não saiba! – E pegou nela como se não pesasse nada e começou a lamber o seu nariz ao mesmo tempo que ela dava gargalhadas e guinchava e depois levou-a para a cama.
                Na fila da cantina Sam Fetisher aproximou-se de Sombra e sorriu, exibindo os seus dentes velhos. Sentou-se ao lado de Sombra e começou a comer o seu macarrão com queijo.
                - Temos de falar. – Disse Sam Fetisher.
                Sam Fetisher era um dos homens mais negros que Sombra alguma vez tinha visto. Podia ter sessenta anos. Podia ter oitenta. Todavia, Sombra já tinha conhecido drogados de trinta anos que pareciam mais velhos do de Sam Fetish.
                - Mhm? – Disse Sombra.
                - Está a aproximar-se uma tempestade. – Disse Sam.
                - Parece. – Disse Sombra – Talvez neve em breve.
                - Não é esse tipo de tempestade. Estão a chegar tempestades maiores do que essas. Estou a dizer-te, rapaz, ficas melhor aqui do que lá fora na rua quando chegar a tempestade.
                - Já cumpri a minha pena. – Disse Sombra. – Na Sexta-Feira vou-me embora.
                Sam Fetish fixou o seu olhar em Sombra. – De onde és? – Perguntou ele.
                - Eagle Point. Indiana.
                - És um cabrão mentiroso. – Disse Sam Fatisher. – Quero dizer as tuas origens. De onde são os teus pais?
                - Chicago. – Disse Sombra. A sua mãe tinha vivido em Chicago em criança e tinha morrido lá há meia vida atrás.
                - Tal como disse. Aproxima-se uma grande tempestade. Fica no teu canto, Rapaz-Sombra. Parece… como se chamam aquelas coisas em que se apoiam os continentes? Uma espécie de placas?
                - Placas tectónicas? – Arriscou Sombra.
                - É isso. Placas tectónicas. É como quando elas se mexerem, quando a América do Norte deslizar para a América do Sul, não vais querer estar no meio. Entendes?
                - Nem um bocadinho.
                Um olho castanho fechou-se num pestanejar lento. – Bem, então não digas que não te avisei. – Disse Sam Fetisher, e levou um pedaço de gelatina de laranja tremente à boca.
                - Não digo.
                Sombra passou a noite meio acordado, a adormecer e a acordar, a ouvir o seu colega de cela resmungar e ressonar na cama debaixo dele. A várias celas de distância um homem queixava-se e uivava e chorava como um animal e, de vez em quando, alguém lhe gritava para se calar. Sombra tentou não ouvir. Deixou que os minutos vazios passassem por ele, solitários e vagarosos.
                Faltavam dois dias. Quarenta e oito horas que começaram aveia e café da prisão e um guarda chamado Wilson que deu uma palmada no ombro de Sombra com mais força do que era necessário e disse:
                - Sombra? Por aqui.
                Sombra revistou a sua consciência. Estava calma, o que não significava, como tinha reparado, numa prisão, que não estava metido em sarilhos. Os dois homens andaram mais-ou-menos lado a lado, os seus pés ecoavam no metal e no cimento.
                Sombra sentiu o medo na garganta, tão amargo como café velho. A coisa má estava a acontecer…
                Havia uma voz na sua cabeça a sussurrar que lhe iam acrescentar mais um ano à sentença, pô-lo na solitária, cortar-lhe as mãos, cortar-lhe a cabeça. Ele disse a si próprio que estava a ser estúpido, mas o seu coração estava a bater acelerado, quase a saltar-lhe do peito.
                - Não te percebo, Sombra. – Disse Wilson enquanto andavam.
                - O que não percebe, senhor?
                - Não te percebo a ti. És calado demais, caramba. Educado demais. Esperas como os velhos, mas tens o quê? Vinte e cinco anos? Vinte e oito?
                - Trinta e dois, senhor.
                - E o que és tu? Latino? Cigano?
                - Não que saiba, senhor. Talvez.
                - Se calhar descendes de pretos. Descendes de pretos, Sombra?
                - Talvez, senhor. – Sombra endireitou-se e olhou directamente para a frente e concentrou-se em não deixar que o homem o irritasse.
                - Ai é? Bem, o que sei é que me assustas como o caraças. – Wilson tinha cabelo louro sujo e uma cara amarela como a areia e um sorriso amarelo como a areia. – Vais deixar-nos daqui a pouco.
                - Espero que sim, senhor.
                Os dois passaram por alguns pontos de vigia. Wilson mostrou sempre a sua identificação. Subiram um lanço de escadas e chegaram à porta do escritório do director da prisão. Tinha o nome do director da prisão, G. Patterson, na porta em letras pretas e, ao lado da porta, uma miniatura de um semáforo.
                A luz superior vermelha estava ligada.
                Wilson premiu um botão debaixo do semáforo.
                Ficaram ali em silêncio alguns minutos. Sombra tentou convencer-se de que estava tudo bem, que na Sexta-Feira de manhã estaria num avião a caminho de Eagle Point, mas não acreditava em si.
                A luz vermelha apagou-se e a verde ligou-se e Wilson abriu a porta. Entraram.
                Sombra tinha visto o escritório do director da prisão algumas vezes nos últimos três anos. Uma vez ele andava a mostrar as instalações a um político. Uma vez, durante um bloqueio, o director tinha falado com eles em grupos de cem para dizer que a prisão tinha gente a mais e, dado que ia continuar a ter gente a mais, o melhor era habituarem-se a isso.
                Visto de perto, Patterson tinha pior aspecto. A sua cara era rectangular com cabelo cinzento cortado em estilo militar. Cheirava a Old Spice. Atrás dele estava uma estante com livros, todos com a palavra Prisão no título; a sua secretária estava limpa na perfeição, vazia com a excepção de um telefone e um calendário que permitia arrancar as folhas Far Side. Ele tinha um aparelho auditivo no ouvido esquerdo.
                - Sente-se, por favor.
                Sombra sentou-se. Wilson ficou de pé atrás dele.
                O director abriu uma gaveta da secretária e tirou de lá um ficheiro, colocando-o depois na sua secretária.
                - Diz aqui que foi condenado a seis anos por assalto á mão armada e agressão. Cumpriu três anos da pena. Devia ser libertado na Sexta-Feira.
                Devia? Sombra sentiu o estômago a revirar-se dentro dele. Perguntou-se quanto mais tempo teria de cumprir pena. Outro ano? Dois anos? Os três restantes? Tudo o que disse foi “Sim, senhor”.
                O director passou a língua pelos lábios. – O que disse?
                - Eu disse “sim, senhor”.
                - Sombra, vamos libertá-lo esta tarde. Vai sair dois dias mais cedo. – Sombra assentiu e esperou pela parte má. O director desviou o olhar para o papel na sua secretária.
                - Isto chegou do Johnson Memorial Hospital em Eagle Point… A sua mulher. Ela faleceu nas primeiras horas da manhã de hoje. Foi um acidente de automóvel. Lamento.
                Sombra assentiu mais uma vez.
                Wilson acompanhou-o até à sua cela, sem dizer nada. Destrancou a porta da cela e deixou Sombra entrar. Depois disse:
                - É uma daquelas piadas da boa notícia e da má notícia, não é? A boa notícia é que o vamos deixar sair mais cedo, a má é que a sua mulher morreu. – Ele riu-se como se tivesse mesmo piada.
                Sombra não disse uma palavra.