domingo, 16 de outubro de 2011

O Segredo do Rio de Miguel Sousa Tavares - excerto

The Secret of the River

Once upon a time there was a boy who lived in a country house. It was a small and white house with a very tall chimney through which the smoke of the fireplace would come out. In the winter it was always lit and it was used to cook and heat the house. Outside the house there was an orchard with a variety of fruit trees and, since there were many kinds of trees, there was always fresh fruit for most of the year. In the winter, the trees bore oranges and tangerines, in the spring it bore pears and apples; in the summer it was the time of the plums, cherries and peaches. When the summer was ending and in the fall, came the figs and the quinces and the big grapevine which gave them shade would be filled with grapes and, when the proper season for each fruit ended, you could eat the compotes the boy’s mother made and which she kept in clay bowls and in glass jars that always filled the entire house with a scented smell. Besides the orchard trees, the field around the house where the boy lived also had other very tall and thick trees so old that they had been there since before the boy's grandfather built the house. The chestnut trees bore chestnuts, the walnut tree bore walnuts, but, more than anything, the big and old trees, like the two oak trees in front of the house, gave shade and they looked as if they were protecting the house and keeping company. By the stream, that ran in front of the land there were tall and slim beeches and weeping willows. Their thick tops would fall to the ground and that was where the boy played with his friends and his two younger brothers, pretending the tops were shacks.
                Nevertheless, the boy’s favourite place was the stream. The stream was a ramification of the river that ran far away in the village and it was the result of an abrupt separation from the main course. It meandered through the fields amid the rice fields and the corn fields in the summer, until both courses met again past the house. The stream made a curve and then dove in a small water fall made of rocks before broadening and forming a lake right in front of the house. The floor was made of sand and the water was clear and perfect for drinking. People who lived in that place and in the near village drank the water, cooked with it and fish on the river so they were all very careful not to pollute the river by throwing garbage or other things in there. People knew water is the most precious thing in life and a river that runs clean is a miracle of nature and it cannot be spoiled. There, on that small lake which the river formed, the boy had learned to swim when he was still very young and he spent all his summer days there bathing. He would swim with his eyes open under water, therefore he already knew almost the entire bottom of the lake, from the prettiest rocks to the many fish species that descended through the water fall and crossed the lake, go along the river towards the sea which was very far from there.  There were also two or three fish that weren’t just passing by and lived in the banks of the small lake in hideouts made of rocks, covered with tree branches which dove in the water and hid its holes. Sometimes the boy would take a peek at them in their houses and when he couldn't see them he knew the fish had gone to the river to look for food.

 Original:

                Era uma vez um rapaz que morava numa casa no campo. Era uma casa pequena e branca com uma chaminé muito alta por onde saia o fumo da lareira que no Inverno estava sempre acesa e que servia para cozinhar e para aquecer a casa. À roda da casa havia um pomar com árvores de fruto e, como as árvores eram de várias espécies, havia sempre fruta fresca durante quase todo o ano. No Inverno, as árvores davam laranjas e tangerinas, na Primavera davam pêras e maçãs vermelhas, no Verão era a vez das ameixas, das cerejas e dos pêssegos. No fim do Verão e no Outono, chegavam os figos e os marmelos e a parreira grande, que dava sombra, enchia-se de uvas e, quando passava a estação própria de cada fruta, podia-se comer as compotas que a mãe do rapaz tinha feito e que guardava em tigelas de barro e boiões de vidro que davam sempre um cheiro perfumado a toda a casa. Mas, além das árvores do pomar, o campo à roda da casa onde o rapaz vivia, tinha também outras árvores muito altas e grossas e que eram tão antigas que já estavam lá antes de a casa ter sido feita pelo avô do rapaz. O castanheiro dava castanhas, a nogueira dava nozes, mas, acima de tudo, as árvores grandes e antigas, como os dois carvalhos em frente de casa, davam sombra e pareciam guardar a casa e fazer companhia. Junto ao ribeiro, que passava à frente do terreno, havia faias altas e esguias e chorões cuja copa densa caía até ao chão e debaixo das quais o rapaz brincava às cabanas com os amigos e com os dois irmãos mais novos.
                Mas o sítio preferido do rapaz era o ribeiro. O ribeiro era um braço do rio que passava lá ao longe na aldeia e que de repente se separava dele e serpenteava pelo meio dos campos, entre os arrozais e os campos de milho do Verão, até voltar a encontrar-se outra vez com o rio principal já depois de passada a casa. O ribeiro fazia uma curva e depois mergulhava numa pequena cascata de pedras antes de se alargar e formar um lago mesmo em frente da casa. O chão era de areia e pequenas pedras que se chamavam seixos e a água era transparente e óptima para beber. As pessoas que moravam naquele lugar e na aldeia próxima bebiam daquela água, cozinhavam com ela e pescavam no rio e por isso todos tinham muito cuidado para não sujar o rio deitando lixo ou outras coisas lá para dentro. As pessoas sabiam que a água é a coisa mais preciosa da vida e que um rio que corre limpo é um milagre da natureza que não pode ser estragado. Aí, nesse pequeno lago que o ribeiro formava, o rapaz aprendera a nadar ainda muito pequeno e passava lá todos os dias de Verão a tomar banho. Debaixo de água nadava com os olhos abertos e por isso conhecia já quase todo o fundo do rio, desde as pedras mais bonitas até às várias espécies de peixes que desciam pela cascata e atravessavam o lago, continuando pelo rio abaixo, em direcção ao mar, muito longe dali. Havia também dois ou três peixes que não estavam de passagem e moravam nas margens do pequeno lago entre esconderijos de pedras cobertos por ramos de árvores que mergulhavam sobre as águas e escondiam os seus buracos. Às vezes o rapaz ia espreitá-los nas suas casas e, quando não os via lá, sabia que os peixes tinham ido nadar ao longo do rio à procura de comida.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Excerto de "American Gods" de Neil Gaiman parte 2


Entorpecido, empacotou as suas posses, livrou-se da maioria. Deixou lá o Heródoto de Discreto e o livro dos truques de moedas e, com uma angústia momentânea, abandonou os discos de metal vazios que tinha roubado da oficina e que lhe tinham servido de moedas. Haveria moedas, moedas verdadeiras, lá fora. Barbeou-se. Vestiu roupas civis. Caminhou de porta em porta sabendo que nunca voltaria a passar por elas novamente, a sentir um vazio por dentro.
                A chuva tinha começado a cair com força do céu cinzento, uma chuva gelada. Bolinhas de gelo atacavam a cara de Sombra, enquanto a chuva encharcava o seu sobretudo à medida que se aproximavam do ex autocarro escolar amarelo que os levaria à cidade mais próxima.
                Quando chegaram ao autocarro estavam ensopados. Oito deles iam embora. Mil e quinhentos ainda estavam lá dentro. Sombra sentou-se no autocarro e tremeu até o aquecimento começar a funcionar, perguntou-se o que faria, para onde iria.
                Imagens fantasmagóricas encheram a sua mente de forma involuntária. Na sua imaginação estava a sair de outra prisão há muito tempo.
                Tinha estado preso numa divisão sem luz há demasiado tempo: a sua barba estava descontrolada e o seu cabelo estava todo emaranhado. Os guardas tinham-no conduzido por uma escadaria cinzenta e para uma praça cheia de coisas de cores garridas, com pessoas e objectos. Era dia de mercado e ele ficou ofuscado com todo o barulho e a cor, cego com a luz do sol que enchia a praça enquanto cheirava o ar salgado e todas as coisas boas do mercado e, à sua esquerda, o sol transmitia o seu brilho a partir da água…
                O autocarro deu um solavanco quando parou num sinal vermelho.
                O vento uivava à volta do autocarro e os pára-brisas afastavam torrentes de água com força para trás e para a frente no vidro fazendo com que a cidade parecesse um borrão de vermelho e amarelo molhados. A tarde estava a começar, mas parecia que já era noite através do vidro.
                - Merda. – Disse o homem no assento atrás de Sombra, enquanto limpava a condensação da janela com a mão e olhava para uma figura molhada que se apressava no passeio. – Há gajas lá fora.
                Sombra engoliu em seco. Ocorreu-lhe que ainda não tinha chorado, na verdade não tinha sentido nada. Não houve lágrimas, nem mágoa. Nada.
                Deu por si a pensar num tipo chamado Johnnie Larch, com quem tinha partilhado a cela nos primeiros tempos de prisão, que lhe tinha dito que uma vez tinha sido libertado após cinco anos atrás das grades com cem dólares e um bilhete para Seattle onde vivia a sua irmã.
                Johnnie Larch tinha chegado ao aeroporto e entregou o seu bilhete à mulher do balcão e ela pediu para ele apresentar a sua carta de condução. Ele mostrou-a. Tinha caducado dois anos antes. Ela disse-lhe que não era válida como documento de identificação. Ele disse-lhe que podia não ter validade como carta de condução, mas que servia muito bem como documento de identificação e, raios, quem raios é que ela pensava que ele era senão ele?
                Ela pediu-lhe para baixar o tom de voz.
                Ele exigiu-lhe o raio de um cartão de embarque ou ia arrepender-se e que não aceitava que lhe faltassem ao respeito. Ninguém deixa que haja falta de respeito na prisão.
                Depois ela carregou num botão e, passado pouco tempo, apareceu a segurança do aeroporto e tentaram persuadir Johnnie Larch a deixar o aeroporto sem mais confusões e ele não quis sair e houve uma espécie de desentendimento.
                O lado positivo de tudo isto foi que Johnnie Larch acabou por nunca chegar a Seattle e passou os dois dias seguintes nos bares da cidade e, quando acabaram os cem dólares, assaltou um posto de gasolina com uma arma de brincar para poder continuar a beber e a polícia acabou por o apanhar por estar a mijar na rua. Pouco depois já estava outra vez na choça para cumprir o resto da pena e ainda mais algum tempo pelo assalto à gasolineira.
                A moral desta história, de acordo com Johnnie Larch, era a seguinte: não chateies pessoas que trabalham em aeroportos.
                - Tens a certeza de que não é algo do género, “O tipo de comportamento que funciona num ambiente específico, como uma prisão, pode não funcionar e pode até tornar-se prejudicial quando usado fora de tal ambiente?” – Disse Sombra quando Johnnie Larch lhe contou a história.
                - Não, acredita nisto, estou a dizer-te, meu – disse Johnnie Larch – não chateies aquelas cabras dos aeroportos.
                Sombra esboçou um meio sorriso com essa recordação. Ainda faltavam muitos meses para a sua carta de condução caducar.
                - Central de camionagem! Saiam todos!
                O edifício tresandava a urina e cerveja amarga. Sombra entrou num táxi e disse ao motorista para o levar ao aeroporto. Acrescentou que lhe pagava mais cinco dólares se o fizesse em silêncio. Chegaram lá em vinte minutos e o motorista não disse uma palavra.
                Depois Sombra cambaleava pelo terminal bastante iluminado do aeroporto. Sombra estava preocupado com a questão do bilhete electrónico. Sabia que tinha um bilhete para um voo na Sexta-Feira, mas não sabia se o poderia usar naquele dia. Tudo o que era electrónico parecia fundamentalmente mágico para Sombra e passível de evaporar a qualquer momento.
                Ainda assim, ele tinha a sua carteira, estava de novo em sua posse pela primeira vez em três anos e continha vários cartões de crédito caducados e um cartão Visa que lhe tinha feito a surpresa agradável de só caducar no final de Janeiro. Tinha um número de reserva e apercebeu-se que tinha a certeza de que, assim que voltasse a casa, tudo se resolveria de alguma forma. A Laura estaria bem outra vez. Talvez fosse algum esquema para o fazer voltar para casa uns dias antes. Ou talvez fosse uma simples confusão: tinha sido o corpo de outra Laura Lua o que retiraram dos destroços na auto-estrada.
                Relâmpagos tremeluziam do lado de fora do aeroporto, pelas janelas. Sombra apercebeu-se de que estava a suster a respiração, à espera de algo. Um estrondo distante de trovoada. Expirou.
                Uma mulher branca cansada olhou fixamente para ele atrás do balcão.
                - Olá. – Disse Sombra. É a primeira mulher desconhecida com quem falo em pessoa em três anos. – Tenho o número de um bilhete electrónico. Era para viajar na Sexta-Feira, mas tenho de ir hoje. Morreu uma pessoa na minha família.
                - Mhm. Lamento. – Ela escreveu algo com o teclado, olhou para o ecrã, voltou a escrever. – Não há problema. Está no voo das 15:30. Pode sofrer atrasos devido à tempestade, por isso esteja atento aos ecrãs. Vai levar bagagem no porão?
                Ele mostrou a sua mochila. – Não tenho de levar isto no porão, pois não?
                - Não. – Disse ela. – Não é preciso. Tem alguma identificação com fotografia?
                Sombra mostrou-lhe a sua carta de condução.
                Não era um aeroporto grande, mas a quantidade de pessoas que ali vagueavam, simplesmente vagueavam, maravilhou-o. Observou pessoas descontraídas a pousar as suas malas, carteiras enfiadas em bolsos de trás, viu bolsas pousadas, sem serem vistas, debaixo de cadeiras. Foi aí que se apercebeu de que já não estava na prisão.
                Trinta minutos de espera até ao embarque. Sombra comprou uma fatia de pizza e queimou o lábio no queijo quente. Pegou nos seus trocos e foi aos telefones. Telefonou a Robbie na Muscle Farm, mas foi para as mensagens.
                - Olá, Robbie. – Disse Sombra. – Disseram-me que a Laura morreu. Deixaram-me sair mais cedo. Vou a caminho de casa.
                Depois, porque as pessoas têm tendência a cometer erros, já tinha visto isso a acontecer, ligou para casa e ouviu a voz de Laura.
                - Olá. – Disse ela. – Não estou aqui ou não posso atender agora. Deixem uma mensagem e eu ligo. E tenham um bom dia.
                Sombra não teve coragem de deixar uma mensagem.
                Sentou-se numa cadeira de plástico perto da porta de embarque e ao mesmo tempo segurava a sua mochila com tanta força que lhe doía a mão.
                Estava a pensar na primeira vez em que tinha visto Laura. Nem sequer sabia o seu nome na altura. Ela era a melhor amiga de Audrey Burton. Estava sentado com Robbie numa cabine do restaurante Chi-Chi quando Laura entrou um passo ou perto disso atrás de Audrey, e Sombra deu por si a olhar fixamente. Ela tinha cabelo longo e cor de avelã e uns olhos tão azuis que Sombra pensou por engano que ela estava a usar lentes de contacto coloridas. Ela pediu um daiquiri de morango e insistiu para que Sombra o provasse e riu-se com deleite quando ele o fez.
                Laura adorava fazer as pessoas provar o que ela provava.
                Ele deu-lhe um beijo de boa noite, nessa noite, e ela sabia a daiquiri de morango, e ele nunca mais quis beijar outra pessoa.
                Uma mulher anunciou que o seu avião estava pronto para o embarque e a fila de Sombra foi a primeira a ser chamada. Ele ficou no fundo do avião com um lugar vazio ao seu lado. A chuva batia de forma contínua no avião: ele imaginou crianças pequenas a atirar mãos cheias de ervilhas secas do céu.
                Assim que o avião descolou, adormeceu.
                Sombra estava num sítio escuro e a coisa que estava a olhar para ele tinha uma cabeça de búfalo, espessa e peluda com uns olhos molhados enormes. O seu corpo era de homem, oleado e lustroso.
                - Vêm aí mudanças. – Disse o búfalo sem mexer os lábios. – Certas decisões terão de ser tomadas.
                Luz de fogo tremeluziu vinda das paredes molhadas da caverna.
                - Onde estou? – Perguntou Sombra.
                - Na Terra e debaixo da Terra. – Disse o homem búfalo. – Estás onde esperam os esquecidos. – Os seus olhos era berlindes pretos líquidos e a sua voz um estrondo vindo de debaixo do mundo. Cheirava a vaca molhada. – Acredita. – Disse a voz estrondosa. – Se quiseres sobreviver, tens de acreditar.
                - Acreditar em quê? – Perguntou Sombra. – Em que devo acreditar?
                Ele olhou fixamente para Sombra, o homem búfalo, e fez-se gigante, e os seus olhos encheram-se de fogo. Abriu a sua boca de búfalo salpicada de saliva e era vermelha por dentro com as chamas que ardiam dentro dele, debaixo da Terra.
                - Em tudo. – Rosnou o homem búfalo.
                O mundo tremeu e girou e Sombra estava outra vez no avião; mas o tremer continuava. Na parte da frente do avião uma mulher gritava meia encorajada.
                Os relâmpagos rebentavam com uma luz cegante por todo o avião. O capitão surgiu no interlocutor para dizer que ia tentar ganhar alguma altitude para fugir da tempestade.
                O avião foi sacudido e estremeceu e Sombra perguntou-se de forma fria e despreocupada, se morreria. Parecia possível, mas pouco provável. Olhou pela janela e viu os relâmpagos iluminarem o horizonte.
                Depois adormeceu outra vez e sonhou que estava de novo na prisão e que o Discreto lhe tinha dito em segredo na fila da comida que alguém tinha um contrato pela vida dele, mas que Sombra não podia descobrir quem ou porquê. Quando acordou, estavam a aterrar.
                Saiu a cambalear do avião e a piscar os olhos até estar completamente acordado.
                Tinha a ideia de que todos os aeroportos tinham o mesmo aspecto. Não importava onde estava, estava num aeroporto: azulejos e passagens pedonais e quartos de banho e portas e quiosques e luzes florescentes. Este aeroporto parecia um aeroporto. O problema é que não era a este aeroporto que queria chegar. Este aeroporto era grande, com demasiadas pessoas e demasiadas portas de embarque.
                - Desculpa, senhora?
                A mulher olhou para ele por cima do bloco de notas. – Sim?
                - Que aeroporto é este?
                Ela olhou para ele, confusa, a tentar decidir se ele estava ou não a brincar, depois disse, - St. Louis.
                - Pensava que este avião ia para Eagle Point.
                - E ia. Eles desviaram a rota para aqui devido ás tempestades. Não anunciaram isso?
                - É provável. Eu adormeci.
                - Tem de falar com aquele homem ali de casaco vermelho.
                O homem era quase tão alto como sombra: parecia o pai de uma sitcom dos anos setenta e escreveu algo no computador e disse a Sombra para correr – corra! – para uma porta de embarque do outro lado do terminal.
                Sombra correu por todo o aeroporto, mas a porta de embarque já estava fechada quando lá chegou. Viu o avião a afastar-se da porta, através da janela.
                A mulher da secretária de apoio ao passageiro (pequena e castanha, com uma verruga num dos lados do nariz) consultou outra mulher e fez uma chamada. (“Não, esse já não dá. Acabaram de o cancelar”.) Depois imprimiu outro cartão de embarque.
                - Com isto pode embarcar. – Disse-lhe. – Vamos ligar com antecedência para a porta de embarque e dizer-lhes que o senhor está a caminho.
                Sombra sentiu-se como uma ervilha a ser trocada entre três copos, ou uma carta a ser baralhada. Mais uma vez correu por todo o aeroporto, acabando perto de onde tinha saído do avião.
                Um homem pequeno na porta de embarque pegou no seu cartão de embarque. – Estamos à sua espera. – Confidenciou, enquanto rasgava a ponta do cartão de embarque, com o lugar de Sombra (17-D) aí imprimido. Sombra foi depressa para o avião e fecharam a porta atrás dele.
                Passou pela primeira classe sem parar – havia apenas quatro lugares na primeira classe, três deles estavam ocupados. O homem barbudo num fato pálido que estava sentado ao lado do lugar desocupado na frente de todo, deu um sorriso largo a Sombra quando este entrou no avião, depois levantou o seu pulso e bateu de leve no relógio, enquanto Sombra passava por ele.
                Pois, pois. Estou a atrasá-lo, pensou Sombra. Que seja esse o seu maior problema.
                O avião parecia estar bastante cheio à medida que caminhava até ao fundo. Na verdade, descobriu Sombra, estava completamente cheio e estava uma mulher de meia idade sentada no lugar 17-D. Sombra mostrou-lhe o seu cartão de embarque e ela mostrou-lhe o dela: eram iguais.
                - Pode ir para o seu lugar, por favor? – Pediu a hospedeira.
                - Não. – Disse ele. – Infelizmente não posso.
                A hospedeira bateu com a língua no céu-da-boca e verificou os seus cartões de embarque, depois pediu a Sombra que a seguisse novamente até à frente do avião e indicou-lhe o lugar vazio na primeira classe.
                - Parece que é o seu dia de sorte. – Disse-lhe. – Quer que lhe traga algo para beber? Temos tempo agora antes da descolagem e tenho a certeza que precisa de uma bebida depois disto.
                - Pode ser uma cerveja, se faz favor. – Disse Sombra. – Qualquer marca serve.
                A hospedeira afastou-se.
                O homem do fato de cor pálida sentado ao lado de Sombra bateu no seu relógio com a unha. Era um Rolex preto.
                - Estás atrasado. – Disse o homem e esboçou um sorriso largo sem qualquer tipo de simpatia.
                - Desculpe?
                - Disse que estavas atrasado.
                A hospedeira levou um copo de cerveja a Sombra.
                Por um momento, ele perguntou-se se o homem era doido e depois chegou à conclusão de que ele se devia estar a referir ao avião, por estar à espera de mais um passageiro.
                - Peço desculpa se lhe atrasei a vida. – Disse ele de forma educada. – Está com pressa?
                O avião afastou-se da porta de embarque. A hospedeira voltou e tirou a cerveja a Sombra. O homem do fato de cor pálida fez-lhe um sorriso e disse: - Não se preocupe. Eu seguro bem isto. – E ela deixou-o manter o seu copo de whisky Jack Daniel’s, ao mesmo tempo que protestava, de forma pouco veemente, que tal violava as regras da companhia aérea. (“Deixe-me julgar isso por mim, minha cara”.)
                - O tempo é algo verdadeiramente importante, - disse o homem – mas não. Estava meramente preocupado com o facto de que não chegaria a tempo ao avião.
                - Foi simpático da sua parte.
                O avião estava irrequieto no chão, os motores vibravam ansiosos para trabalhar.
                - Simpático o tanas. – Disse o homem do fato de cor pálida. – Tenho um emprego para ti, Sombra.
                Um rugido de motores. O pequeno avião avançou, puxando Sombra para trás. Depois estavam no ar e as luzes do aeroporto afastavam-se debaixo deles. Sombra olhou para o homem sentado ao seu lado.
                O seu cabelo era uma espécie de cinzento avermelhado. Uma cara íngreme e quadrada com olhos cinzentos. O fato parecia caro e era da cor de gelado de baunilha derretido. A sua gravata era de seda cinzenta escura e o pin era uma árvore feita de prata: com tronco, ramos e raízes profundas.
                Segurou o seu copo de Jack Daniel’s enquanto descolavam e não entornou uma gota.
                - Não vais perguntar-me que tipo de emprego é? – Perguntou ele.
                - Como sabe quem eu sou?
                O homem deu uma risada. – Ah, saber o nome das pessoas é a coisa mais fácil do mundo. Um pouco de reflexão, um pouco de sorte, um pouco de memória. Pergunta-me que tipo de emprego.
                - Não. – Disse Sombra. A hospedeira levou-lhe outro copo de cerveja e ele bebeu-a com pequenos tragos.
                - Porque não?
                - Vou para casa. Tenho um emprego lá à minha espera. Não quero outro emprego.
                O sorriso íngreme não mudou na aparência, mas agora ele parecia sinceramente divertido.
                - Não tens um emprego à tua espera em casa. – Disse ele. – Não tens nada lá à tua espera. No entanto, eu estou a oferecer-te um trabalho perfeitamente legal com bom vencimento, segurança limitada, benefícios de parte incríveis. Raios, se chegares a viver muito, até te ofereço um plano de reforma. Achas que és capaz de querer uma destas coisas?
                Sombra disse: - Deve ter visto o meu nome na mala.
                O homem não disse nada.
                - Quem quer que seja, - disse Sombra – não podia saber que eu vinha para este avião. Nem eu sabia que vinha neste avião e se o meu avião não tivesse sido desviado para St. Louis, não estaria aqui. Parece-me que o senhor é um brincalhão. Talvez esteja à procura de algo. Mas acho que talvez seja melhor acabar com a conversa agora.
                O homem encolheu os ombros.
                Sombra pegou na revista do avião. O pequeno avião estremecia e dava solavancos pelo seu, algo que dificultava a concentração. As palavras flutuavam pela sua mente como bolas de sabão, desaparecendo por completo num momento.
                O homem ao seu lado estava calado a beber o seu Jack Daniel’s com pequenos tragos. Estava de olhos fechados.
                Sombra leu a lista dos canais de música disponíveis nos voos transatlânticos e depois olhou para o mapa do mundo com linhas vermelhas que informavam os destinos da companhia aérea. Depois terminou a leitura da revista e, com alguma resistência, fechou-a e voltou a colocá-la no bolso do banco da frente.
                O homem abriu os olhos. Os seus olhos tinham algo de estranho, pensou Sombra. Um deles era mais cinzento do que o outro. Ele olhou para Sombra.
                - Já agora, - disse ele – foi uma pena ouvir as notícias da tua mulher, Sombra. Foi uma grande perda.
                Aí, Sombra quase bateu no homem. Porém, em vez disso, respirou fundo. (-É como te digo, não chateies aquelas cabras dos aeroportos. – Disse Johnnie Larch na sua cabeça – Senão arrastam-te logo para a choça). Contou até cinco.
                - Também para mim. – Disse ele.
                O homem abanou a cabeça – Antes não tivesse de acontecer assim. – Disse ele e suspirou.
                - Ela morreu num acidente de automóvel, – disse Sombra – Há formas piores de morrer.
                O homem abanou a cabeça lentamente. Por um momento Sombra ficou com a impressão de que o homem não era substancial, de que o avião se tinha tornado mais real e o seu vizinho menos.
                - Sombra, - disse ele. – Não é uma brincadeira. Não é um truque. Posso pagar-te melhor do que vais conseguir ganhar em qualquer outro emprego. És um ex-condenado. Não vai haver uma fila grande de pessoas a atropelar-se para te contratar.
                - Senhor quem-raio seja, - disse Sombra, num tom suficientemente alto para se fazer ouvir por cima do ruído dos motores – não existe dinheiro suficiente no mundo”.
                O sorriso cresceu. Sombra deu por si a lembrar-se de um programa sobre chimpanzés da PBS. No programa diziam que quando os macacos ou os chimpanzés sorriam era uma forma de fazer uma careta em situações de ódio ou agressão ou terror. Quando um chimpanzé sorri, é uma ameaça.
                - Trabalha para mim. Pode ser um pouco arriscado, claro, mas se sobreviveres podes ter tudo o que desejas. Podes ser o próximo Rei da América. Bem, - disse o homem – quem mais é que te vai pagar tão bem, hmm?
                - Quem é o senhor? – Perguntou Sombra.
                - Ah, sim. A era da informação (menina, podia trazer-me outro copo de Jack Daniel’s? Não ponha muito gelo.), não que tenha existido outro tipo de era. Informação e conhecimento: uma moeda que nunca se extingiu.
                - Perguntei quem era.
                - Vamos ver. Bem, visto que hoje é mesmo o meu dia de sorte, porque não me chamas Quarta-Feira? Senhor Quarta-Feira. Se bem que, com este tempo, até que podia ser Quinta-Feira, não?
                - Qual é o seu nome verdadeiro?
                - Trabalha para mim tempo suficiente e bem o suficiente, - disse o homem do fato de cor pálida – e pode ser que até te diga. Aí está. Uma oferta de emprego. Pensa nisso. Ninguém espera que digas que sim imediatamente, sem saber se te estás a meter num tanque de piranhas ou numa caverna de ursos. Demora o tempo que for preciso. – Fechou os olhos e encostou-se no seu lugar.
                - Não me parece. – Disse Sombra. Não gosto do senhor. Não quero trabalhar consigo.
                - É como digo, - proferiu o homem sem abrir os olhos – não tenhas pressa. Demora o tempo que for preciso.
                O avião aterrou com um solavanco e alguns passageiros saíram. Sombra olhou pela janela: era um aeroporto pequeno no meio do nada e ainda faltavam mais dois aeroportos pequenos até chegar a Eagle Point. Sombra dirigiu o olhar para o homem do fato de cor pálida, o Sr. Quarta-Feira? Parecia estar a dormir.
                Impulsivamente, Sombra levantou-se, pegou na sua mala e saiu do avião, desceu a escada até chegar ao piso de asfalto molhado e caminhou com passos uniformes para as luzes do terminal. Uma chuva miúda salpicava-lhe a cara.
                Antes de entrar no aeroporto, parou, virou-se para trás e olhou. Mais ninguém tinha saído do avião. O pessoal de terra retirou a escada, a porta fechou-se e o avião descolou. Sombra entrou e alugou o que descobriu ser, quando chegou ao parque de estacionamento, um Toyota vermelho pequeno.
                Sombra desdobrou o mapa que lhe tinham oferecido e abriu-o no banco de passageiro. Eagle Point ficava a cerca de quatrocentos quilómetros de distância.
                As tempestades tinham terminado, se é que tinham chegado ali. O tempo estava frio e calmo. Algumas nuvens passaram pela Lua e, por um momento, Sombra não sabia se eram as nuvens ou a Lua que se moviam.
                Conduziu para norte durante uma hora e meia.
                Estava a ficar tarde. Ele tinha fome e, quando se apercebeu da fome que realmente tinha, saiu na próxima saída que encontrou e foi até à vila de Nottamun (População: 1301 pessoas). Encheu o depósito na Amoco e perguntou à mulher aborrecida na caixa registadora onde havia um sítio para comer.
                - Há o Bar Crocodilo do Jack. – Disse-lhe. – Fica a oeste daqui na estrada municipal N.
                - Bar Crocodilo?
                - Sim. O Jack diz que eles dão carácter ao sítio. – Ela desenhou um mapa na parte de trás de um folheto lilás. Este publicitava frango assado e os lucros iam para uma menina que precisava de um rim. – Ele tem dois crocodilos, uma cobra e daquelas coisas grandes parecidas com lagartos.
                - Uma iguana?
                - É isso.
                Depois de passar a vila e a ponte, seguiu em frente mais uns três quilómetros e parou em frente a um edifício rectangular baixo com um cartaz da cerveja Pabst.
                O parque de estacionamento estava meio vazio.
                Lá dentro, o ar estava cheio de fumo e na jukebox tocava “Walking After Midnight”. Sombra olhou à sua volta à procura dos crocodilos, mas não os viu. Perguntou-se se a mulher do posto de gasolina não estaria a gozar com ele.
                - O que vai ser? – Perguntou o barman.
                - A cerveja da casa e um hambúrguer com os extras todos. E baratas fritas.
                - Quer uma taça de chili de entrada? É o melhor chili do Estado.
                - Parece-me bem. – Disse Sombra. – Onde é a casa de banho?
                O homem apontou para uma porta num canto do bar. Havia um crocodilo de peluche colado na porta. Sombra entrou.
                Era uma casa de banho limpa e bem iluminada. Sombra olhou para toda a divisão primeiro; era do hábito. (“Lembra-te Sombra, não podes lutar quando estás a mijar.” – Disse Discreto, discreto como sempre na sua cabeça). Escolheu o urinol da esquerda. Depois abriu a braguilha e urinou durante muito tempo sentindo alívio. Leu os papéis amarelados fixados no quadro à sua frente, que tinha também uma fotografia de Jack com dois jacarés.
                Chegou um resmungo cortês do urinol à sua direita, apesar de ele não ter ouvido ninguém a entrar.
                O homem do fato de cor pálida era maior em pé do que parecia quando estava sentado no avião ao lado de Sombra. Era quase da altura de Sombra e Sombra era um homem alto. O homem estava a olhar para a frente. Acabou de urinar, sacudiu as últimas gotas e apertou a braguilha.
                Depois fez um grande sorriso, como uma raposa a comer merda numa cerca com arame.
                - Então, - disse o Sr. Quarta-Feira – já te dei algum tempo para pensar, Sombra. Queres um emprego?